Como se poderia sintetizar em poucas palavras a obra de Bellow, objeto deste comento, tão permeada ela está pela filosofia – e de um tom sombrio, como não poderia deixar de ser, uma vez que o seu protagonista de primeira ordem é um judeu polaco que sobreviveu à insânia nazista?!
Nota-se uma inversão da proeminência entre literatura e filosofia quando se a coteja, v.g., com os romances da “Trilogia da Liberdade” de Sartre (“A idade da razão”; “Sursis” e “Com a morte na alma”), pois que estes se mostram muito mais como filosofia tendo a literatura por veículo, enquanto aquela é literatura em estado pleno, tendo a filosofia um substancioso peso em suas laudas.
Digo melhor: no essencial, a obra não avança em frequentes compassos dialogais ou entrecortes factuais, senão por meio de amplas digressões que se passam na mente das personagens – o Sr. Sammler à frente –, motivo por que menções a pensadores ou escritores são nelas recorrentes: Marx, Schopenhauer, Proust, André Maurois, Freud, Toynbee, Scheler, Meister Eckhart etc.
Em relação a este último, faço um aparte: Bellow parece ter um particular apreço pelo místico, filósofo e teólogo alemão (c. 1260 – c. 1328), chegando a transcrever-lhe um pensamento completo no romance (v. mais abaixo) – assim como também a ele muito se reportava o psicanalista, filósofo e sociólogo alemão, idem de origem judaica, Erich Fromm (1900-1980).
Em abrangente perspectiva, até mesmo pelo precitado matiz reflexivo, o aludido tomo de Bellow reveste-se de atemporalidade, embora haja passagens datadas, em especial aquelas que dizem respeito a eventos bélicos que se passam em Israel, ao longo da segunda metade dos anos 60. Quanto aos episódios inseridos no contexto da 2GM, por persistirem na consciência coletiva da humanidade, descolam-se, de certa forma, desse pendor mais demarcado no tempo. Veja o leitor as infratranscritas citações extraídas ao texto e bem constatará tais asserções.
Não há como deixar de deplorar o modo como as mulheres (idem, o negro, como batedor de carteiras) aparecem mal retratadas em suas páginas, como se sempre fossem padecedoras de uma pulsão sexual irreprimível – muito a lembrar as páginas, eivadas de teses naturalistas, de um Zola ou, entre nós, de um Aluísio de Azevedo –, como se a intenção do autor fosse dar razões às teorias de Freud sobre a sexualidade.
Haverá quem possa evocar, em associação a tais excessos, o episódio que se passa em obra de outro autor norte-americano, a saber, em “O teatro de Sabbath”, de Philip Roth, no curso do qual uma personagem feminina transa, num único dia, com os seus quatro ou cinco homens de quem era amante, como se tencionasse firmar o seu nome no “Guinness World Records”.
Sublinhe-se que essa mirada de Bellow, pouco afeita à figura feminina, parece não ser incidental, pois em outros de seus romances, a exemplo de “Herzog”, sucede o mesmo que por ora se conjectura – concedendo-lhe o benefício da dúvida – como mero indício.
E o que dizer das ações transcorridas nas instalações da Columbia University, onde Sammler fora pronunciar-se sobre tema específico, saindo de lá escorraçado pelos alunos, sob a justificativa de que se tratava de um reacionário? Decerto que mandatários e discentes daquela instituição de ensino, ainda que as páginas assim descritas sejam ficcionais, poderiam acolhê-las como um insulto – e melhor se haveria o autor se configurasse tais desenlaces numa universidade com um nome fantasioso, inventado. Por que não?!
De qualquer modo, “O Planeta do Sr. Sammler” não é literatura prontamente dispensável, mas uma obra entre as melhores do autor, pelo refinamento de seus argumentos, pelo trato arrebatador da linguagem, pela sofisticada irreverência de muitas de suas reflexões.
J.A.R. – H.C.
Saul Bellow
(1915-2005)
Ele estava à procura
do Cavaleiro da Fé, o prodígio verdadeiro. Esse prodígio verdadeiro, tendo
equacionado as suas relações com o infinito, encontrava-se inteiramente à
vontade no finito. Apto a carregar a joia da fé, fazendo os movimentos do
infinito, e por isso não precisando nada mais além do finito, do costumeiro. Enquanto
outros ainda andavam à procura do extraordinário no mundo. Havia também aqueles
que queriam transformar-se naquilo diante do que os demais ficavam
boquiabertos. Estes queriam ser os pássaros de penas lindas ou os peixes de
formas esquisitas, as criaturas humanas cômicas. (BELLOW, 1982, p. 62-63)
Grandeza sem modelos?
Era inconcebível. Ninguém podia ser a coisa em si – realidade. Era necessário
contentar-se com símbolos. Faça disso o objeto da imitação e libere as
qualidades mais altas. Estabeleça, pois, a paz com os intermediários e a
representação. Mas escolha as representações mais altas, mais dignas, do
contrário o indivíduo transformar-se-á no fracasso que agora vê e sabe que é.
(BELLOW, 1982, p. 147)
A humanidade,
embriagada pelo terror, poderia acalmar-se, recuperar o seu juízo. Embriagada
pelo terror? Sim, e os fragmentos [...] compreenderiam; esta terra era um túmulo.
Nossa vida estava emprestada a ela por seus próprios elementos, que tinham de
lhe ser devolvidos: viria um tempo em que os elementos simples pareceriam
demorar demais na libertação das formas mais complicadas de viver, quando cada
elemento, cada célula, diria: “Agora chega!” O planeta era nossa mãe e a terra
onde seríamos sepultados. Não havia como ficar admirado de que a humanidade
quisesse deixá-lo. Quisesse abandonar o ventre prolífero, deixando ao mesmo
tempo essa imensa sepultura. A paixão pelo infinito causada pelo terror, pelo timor
mortis, tinha necessidade de acalmar-se materialmente. Timor mortis
conturbat me. Dies iræ. Quid sum miser tunc dicturus [1]. (BELLOW, 1982, p.
178)
Todo mundo precisa
ter as suas recordações. São elas que mantêm o lobo da insignificância afastado
da porta. E tudo isso deverá continuar. Simplesmente continuará. Haverá mais
seis bilhões de anos de vida da humanidade. Chega a paralisar o coração o
contemplar tamanhas cifras. Seis bilhões de anos antes que o Sol venha a
explodir. Seis bilhões de anos. E o que será de nós? Das outras espécies e de
nós? Como chegaremos àquele fim? E quando tivermos de abandonar a Terra para
seguir em direção a outro sistema solar, que dia mais portentoso será esse!
Mas, então, a espécie humana terá se tornado muito diferente, pois a evolução
continua. Olaf Stapledon [2] calculou que cada indivíduo do futuro viverá
milhares de anos. A pessoa do futuro, de tamanho colossal, seria de um lindo
colorido verde, com uma mão que terá evoluído, transformando-se numa espécie de
caixa de instrumentos, ferramenta forte e sutil, o polegar e o dedo indicador
capazes de exercer uma pressão de milhares de libras. Cada intelecto
pertenceria a uma maravilhosa, analítica e coletiva mente, estudando e resolvendo
seus problemas matemáticos e físicos, participando de um todo sublime. Seria
uma raça de gigantes semi-imortais, esses nossos verdes descendentes, parentes
e aparentados, levando, porém, em si, inevitavelmente, alguma forma das nossas
amargas características, tanto como dos nossos poderes espirituais. A revolução
científica estava apenas com trezentos anos. Como ficaria dentro de um milhão
ou um bilhão de anos? E Deus? Continuaria escondido, mesmo destes irmãos
poderosos no espírito, continuaria fora de alcance? (BELLOW, 1982, p. 186)
“Abençoados são os pobres de espírito. Pobre é aquele que nada tem. Aquele que é pobre de espírito torna-se receptivo a todo espírito. Ora, Deus é o Espírito dos espíritos. O fruto do espírito é o amor, a alegria e a paz. Procure libertar-se das criaturas, de toda consolação proveniente das criaturas. Pois, com certeza, enquanto as criaturas têm o poder de confortá-lo, nunca há de encontrar o verdadeiro conforto. Mas se ninguém mais pode dar-lhe conforto exceto o próprio Deus, então verdadeiramente Deus o confortará”. (MEISTER ECKHART apud BELLOW, 1982, p. 245)
Capa da Obra
(Abril Cultural, 1982)
Notas:
[1] Segundo a tradutora Denise Vreuls, trata-se de excerto de um hino entoado em missas fúnebres, composto, provavelmente, pelo frade católico italiano Tomas de Celano (1185-1260) (BELLOW, 1982, n.r. 1, p. 178). Em tradução literal: “Timor mortis conturbat me. Dies iræ. Quid sum miser tunc dicturus.” [O temor da morte inquieta-me. Dia da ira. O que eu, miserável, hei de dizer.”]
[2] William Olaf Stapledon (1886-1950), filósofo inglês, famoso por suas obras de ficção científica, cujos protagonistas atormentam-se com seus conflituosos impulsos “superiores” e “inferiores”.
Referência:
BELLOW, Saul. O planeta do Sr.
Sammler. Tradução de Denise Vreuls. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1982.
(Série ‘Grandes Sucessos’)
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