Sá-Carneiro lavra os versos deste poema por meio de um jogo denso de sinestesias: são cores, perfumes e sons que emergem de seu estado onírico, de dispersão, de sensibilidade alterada, a engendrar efeitos alucinatórios muito semelhantes aos que a mente se submete, depois que se absorve alguma droga – ópio, morfina ou mesmo álcool.
Mas tudo, de fato, são metáforas: entre ser o que é e o outro que, a seus olhos, seria um tipo-ideal para si mesmo, o poeta delira sob o efeito da mais potente de todas as drogas – o encontrar-se na voragem provocada pelos próprios sentidos. A bem dizer: “É só de mim que ando delirante / Manhã tão forte que me anoiteceu”.
J.A.R. – H.C.
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
Álcool
Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.
Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.
Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me e todo me dissipo –
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo p’ra além...
Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...
Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.
Homem solitário bebendo num bar
(John Barney: pintor norte-americano)
Referência:
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Álcool. In:
__________. Poesia. Por Cleonice Berardinelli. 3. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Agir, 1974. p. 22-23. (‘Nossos Clássicos’; n. 22)
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