Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 17 de outubro de 2021

Mário de Sá-Carneiro - Álcool

Sá-Carneiro lavra os versos deste poema por meio de um jogo denso de sinestesias: são cores, perfumes e sons que emergem de seu estado onírico, de dispersão, de sensibilidade alterada, a engendrar efeitos alucinatórios muito semelhantes aos que a mente se submete, depois que se absorve alguma droga – ópio, morfina ou mesmo álcool.

Mas tudo, de fato, são metáforas: entre ser o que é e o outro que, a seus olhos, seria um tipo-ideal para si mesmo, o poeta delira sob o efeito da mais potente de todas as drogas – o encontrar-se na voragem provocada pelos próprios sentidos. A bem dizer: “É só de mim que ando delirante / Manhã tão forte que me anoiteceu”.

J.A.R. – H.C.

 

Mário de Sá-Carneiro

(1890-1916)

 

Álcool

 

Guilhotinas, pelouros e castelos

Resvalam longemente em procissão;

Volteiam-me crepúsculos amarelos,

Mordidos, doentios de roxidão.

 

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,

Grifam-me sons de cor e de perfumes,

Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,

Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

 

Respiro-me no ar que ao longe vem,

Da luz que me ilumina participo;

Quero reunir-me e todo me dissipo –

Luto, estrebucho... Em vão! Silvo p’ra além...

 

Corro em volta de mim sem me encontrar...

Tudo oscila e se abate como espuma...

Um disco de oiro surge a voltear...

Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

 

Que droga foi a que me inoculei?

Ópio de inferno em vez de paraíso?...

Que sortilégio a mim próprio lancei?

Como é que em dor genial eu me eternizo?

 

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,

Foi álcool mais raro e penetrante:

É só de mim que ando delirante –

Manhã tão forte que me anoiteceu.

 

Homem solitário bebendo num bar

(John Barney: pintor norte-americano)


Referência:

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Álcool. In: __________. Poesia. Por Cleonice Berardinelli. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Agir, 1974. p. 22-23. (‘Nossos Clássicos’; n. 22)

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