Ao empregar um artigo indefinido que não é próprio para acompanhar uma palavra pertencente ao gênero masculino – “uma” poema (1ª e. / 3º v.) –, se de equívoco na grafia ou de erro de digitação tal não houver resultado, decerto o poeta está a empregar uma espécie de “silepse”, querendo fazer valer a palavra pela sua substância primordial – a poesia –, não exatamente equivalente aos elementos gráficos dos versos sobre a folha, as palavras, “ausentes” agora em seus versos, pois que “sem rio por onde escorrer”.
O poema assoma à mente do poeta já sem o plano de uma arquitetura racional, tudo se resumindo a enleios ou comoções – choro, riso, voos, danças, quedas e desalentos –, no caso, talvez mais próximos à “expressão” de sua vida: os versos já não têm razões que expliquem a sua existência ou porque, como folhas, desprendem-se da mente do vate.
J.A.R. – H.C.
João Bosco Bezerra Bonfim
(n. 1961)
hoje eu quero dizer
hoje eu quero dizer
um poema que não vem da palavra
uma poema que – antes de tudo –
vem da voz sem palavras
uma voz que é um aboio
um canto, um choro animal
por isso, tanto sentir
guarda esse poema primal
não é que negue o abrigo
que as palavras-leito me dão
é que não vejo mais nelas
a de minha vida expressão
perdido que fui pelo engano
de tanta tanta razão
meu poema, pois, sem palavras,
só chora e só ri
só voa e cai
só dança e sofre
meu poema – como a folha –
não sabe por que nasceu
nem porque, vento frio,
da árvore se desprendeu
entanto nem Maiakóvski nem Quintana
o acompanham em sua sina tirana
de mal nascer, e já morto, feito
livre das palavras
não ter rio em que escorrer
O despertar no mar da alegria cintilante
(Andy Waite: pintora inglesa)
Referência:
BONFIM, João Bosco Bezerra. hoje eu quero dizer. In: __________. in feito.
1. ed. Brasília, DF: Edição do autor, 2009. p. 6, 22 e 29. (Obra publicada com
o apoio do FAC/SCDF)
Nenhum comentário:
Postar um comentário