Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de outubro de 2021

W. S. Merwin - Sirene de Nevoeiro

A voz lírica ouve a sirene de nevoeiro e passa a temer que ela esteja nos avisando de algo que não queremos reconhecer, com seus gemidos funestos, de besta ferida: sob a neblina, com a visão embaçada, tudo o que desponta como advertência tem sabor de desassossego, de inquietação, de perturbação, pois que ilação inerente a qualquer contemplação do vago, do indistinto.

Nesse jogo de imagens neblinosas, a mensagem talvez valha menos em face de seu sentido estrito do que no metafórico, vale dizer, menos como um alerta para as imediações de regiões pouco profundas do mar ou o que se lhe assemelhe, do que prenúncios angustiantes, pressagiadores, de algo que nos possa sobrevir pessoalmente, perante o qual nossas reações decorram fortuitamente tardias – nossos gritos infaustos, nossas mãos vencidas.

J.A.R. – H.C.

 

W. S. Merwin

(1927-2019)

 

Fog-horn

 

Surely that moan is not the thing

That men thought they were making, when they

Put it there, for their own necessities.

That throat does not call to anything human

But to something men had forgotten,

That stirs under fog. Who wounded that beast

Incurably, or from whose pasture

Was it lost, full grown, and time closed round it

With no way back? Who tethered its tongue

So that its voice could never come

To speak out in the light of clear day,

But only when the shifting blindness

Descends and is acknowledged among us,

As though from under a floor it is heard,

Or as though from behind a wall, always

Nearer than we had remembered? If it

Was we who gave tongue to this cry

What does it bespeak in us, repeating

And repeating, insisting on something

That we never meant? We only put it there

To give warning of something we dare not

Ignore, lest we should come upon it

Too suddenly, recognize it too late,

As our cries were swallowed up and all hands lost.

 

Sirene de Nevoeiro

(Hely A. M. Smith: pintor inglês)

 

Sirene de Nevoeiro

 

Seguramente esse gemido não é a coisa

Que os homens pensavam que estivessem fazendo, quando

Puseram-no lá, para as suas próprias necessidades.

Essa garganta não chama a nada de humano,

Mas a algo que os homens esqueceram,

A agitar-se sob o nevoeiro. Quem feriu aquela besta

De forma incurável, ou de cujo pasto

Ela se perdeu, totalmente crescida, e o tempo

se fechou à sua volta

Sem possibilidade de regresso? Quem jungiu a sua língua

Para que a sua voz nunca pudesse vir

A falar à clara luz do dia,

Mas apenas quando a cegueira movediça

Desce e faz-se reconhecida entre nós,

Como se por baixo de um piso fosse ouvida,

Ou como se viesse por trás de uma parede, sempre

Mais perto do que a tínhamos presente? Se fomos

Nós que que demos língua a esse grito,

O que prenunciaria ele em nós, pondo-se a repetir

E a repetir, insistindo em algo

Que nunca tínhamos em mente? Só o colocamos lá

Para nos advertir sobre algo que não nos atrevemos

A ignorar, para que não o encontremos

Tão repentinamente, reconhecendo-o tarde demais,

Ao tempo que engolidos todos os nossos gritos e perdidas

as nossas mãos.


Referência:

MERWIN, W. S. Fog-horn. In: MAYES, Frances. The discovery of poetry: a field guide to reading and writing poems. 1st Harvest ed. San Diego, CA: Harvest & Harcout, 2001. p. 130-131.

sábado, 30 de outubro de 2021

Salvatore Quasimodo - Os Retornos

Experimentando um estado de relaxamento na Piazza Navona, em Roma, o poeta lembra-se de regiões contíguas ao rio Platani, sul da Itália, não muito longe da cidade onde o próprio Quasimodo nascera, nomeadamente Módica, na Sicília: é o tempo de menino que a memória lhe evoca, quando viva ainda era a sua mãe e deliciava-se com a natureza daquelas agrestes paragens.

Percebe-se na elocução do poeta que, apenas naquele sítio de paz, ele consegue apreender alguma serenidade e, porque não, felicidade – não exatamente onde agora se encontra, como que exilado e dedicado a uma vida exaustiva de trabalho –, daí porque empreende “retornos” ao passado, com o objetivo, quem sabe, de alcançar clareza sobre as urgências a que agora está exposto.

Uma pequena e derradeira observação: no segundo verso da primeira estrofe do poema, lê-se “supino” no original, ou seja, em decúbito dorsal – peito para cima –, com as mãos a sustentar a cabeça por baixo da nuca, como se o poeta estivesse contemplando a quietude do céu. Mas a palavra foi vertida a “bruços” no português, decúbito ventral – peito para baixo.

J.A.R. – H.C.

 

Salvatore Quasimodo

(1901-1968)

 

I Ritorni

 

Piazza Navona, a notte, sui sedili

stavo supino in cerca della quiete,

e gli occhi con rette e volute di spirali

univano le stelle,

le stesse che seguivo da bambino

disteso sui ciotoli del Platani

sillabando al buio le preghiere.

 

Sotto il capo incrociavo le mie mani

e ricordavo i ritorni:

odore di frutta che secca sui graticci,

di violaciocca, di zenzero, di spigo;

quando pensavo di leggerti, ma piano,

(io e te, mamma, in un angolo in penombra)

la parabola del prodigo,

che mi seguiva sempre nei silenzi

come un ritmo che s’apra ad ogni passo

senza volerlo.

 

Ma ai morti non è dato di tornare,

e non c’è tempo nemmeno per la madre

quando chiama la strada,

e ripartivo, chiuso nella notte

come uno che tema all’alba di restare.

 

E la strada mi dava le canzoni,

che sanno di grano che gonfia nelle spighe,

del fiore che imbianca gli uliveti

tra l’azzurro del lino e le giunchiglie;

risonanze nei vortici di polvere,

cantilene d’uomini e cigolio di traini

con le lanterne che oscillano sparute

ed hanno appena il chiaro di una lucciola.

 

In: “Acque e Terre” (1920-1929)

 

Vista da Piazza Navona - Roma

(Hendrik Frans van Lint: pintor flamengo)

 

Os Retornos

 

Praça Navona, de noite, no banco

eu estava de bruços em procura do silêncio,

e os olhos com traços e espirais

uniam as estrelas,

as mesmas que eu seguia quando menino

deitado nas pedras do Platani

silabando no escuro as orações.

 

Na nuca cruzava as minhas mãos

e recordava os retornos:

odor de fruta que seca nos caniços,

de cachos de violetas, de gengibres, de alfazemas,

quando pensava em ler para ti, devagar,

(eu e tu, mamãe, em um ângulo de penumbra)

a parábola do pródigo,

que me seguia sempre nos silêncios

como um ritmo que se abre a cada passo

sem querer.

 

Mas aos mortos não é permitido retomar,

e não existe tempo nem mesmo para a mãe

quando a estrada chama;

e eu tornava a partir, fechado na noite

como um que tema de ficar ao amanhecer.

 

E a estrada me dava as canções

que sabem de grão que se robustece nas espigas,

de flor que empalidece os olivais

entre o azul do linho e os junquilhos;

ressonâncias nos vórtices de pó,

cantilenas de homens e chiados de trenós

com as lanternas que oscilam desmaiadas

e têm apenas a luz do vagalume.

 

Em: “Águas e Terras” (1920-1929)


Referências:

Em Italiano

QUASIMODO, Salvatore. I ritorni. In: __________. Poesie e discorsi sulla poesia. A cura di Gilberto Finzi. 14. ed. Milano, IT: Mondadori, 2005. p. 31.

Em Português

QUASIMODO, Salvatore. Os retornos. In: __________. Poesias escolhidas. Tradução de Sílvio Castro. Rio de Janeiro, RJ: Opera Mundi, 1971. p. 61-62. (Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura patrocinada pela Academia Sueca e pela Fundação Nobel; Prêmio de 1959: Salvatore Quasimodo, Itália)

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Cláudio Murilo Leal - Meus poetas prediletos

Muito recomendáveis! Assim veio-me à mente, com um tom algo motejador, a síntese apresentada por Murilo Leal relativamente aos seus mais diletos poetas. É que, ao mesmo tempo, associei tais versos a certa passagem da letra “Ideologia” (1988), do Cazuza: “Meus heróis morreram de overdose; / Meus inimigos estão no Poder.” Heróis muito recomendáveis, pois! (rs)

Uma breve nota: os dois versos finais destoam, de certa forma, das demais linhas do poema, pois, até onde me parece, ser socialista ou comunista, tanto mais à época de Maiakowski ainda vivo, não se poderia qualificar como opção hábil a inserir qualquer um na faixa externa do desvio-padrão daquela sociedade. Melhor seria tê-lo alinhado, enquanto suicida, ao verso onde constam Maupassant e Hemingway. Mas aí seria pretender violar o que aqueles derradeiros versos representam para o próprio poeta e para os leitores!

J.A.R. – H.C.

 

Cláudio Murilo Leal

(n. 1937)

 

Meus poetas prediletos

 

Ezra Pound era paranoico,

Dostoiewski jogador, bêbado e epilético,

Hõlderlin esquizofrênico,

Nietzsche megalômano,

Jarry e Artaud, doidos,

Juan Ramón Jimenez neurastênico,

Maupassant e Hemingway suicidas,

Villon, ladrão,

Gide, Genet e caterva, bichas...

com que gente fui-me meter.

Além do mais,

Maiakowski era comunista.

 

Em: “As guerras púnicas” (1990)

 

Encontro de poetas no estúdio do artista

(Antonio María Esquivel: pintor espanhol) 


Referência:

LEAL, Cláudio Murilo. Meus poetas prediletos. In: __________. Módulos: 1959-1998. Rio de Janeiro, RJ: Sette Letras, 1998. p. 37. (Ministério da Cultura – Fundação Biblioteca Nacional – Departamento Nacional do Livro; Universidade de Mogi das Cruzes)

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

William Carlos Williams - Nantucket

Muito embora os versos deste poema pareçam corresponder à verbalização de uma pintura, com alguns laivos de natureza-morta, de fato, trata-se de cena que procura mostrar a ambientação de um quarto – não se sabe bem se de uma residência ou de um hotel – a tomar as últimas luzes do dia na ilha atlântica de Nantucket, no Estado de Massachusetts (EUA).

Tem-se a descrição objetiva de um espaço íntimo limpo, fresco e aromado, sem excesso nas palavras, tudo muito simples – tão simples quanto o próprio recinto retratado –, onde as superfícies brilham num claro lume: as imagens valem por si mesmas e tentam apreender a contingência do momento, num provável recesso laboral do poeta.

J.A.R. – H.C.

 

William Carlos Williams

(1883-1963)

 

Nantucket

 

Flowers through the window

lavender and yellow

 

changed by white curtains –

Smell of cleanliness –

 

Sunshine of late afternoon –

On the glass tray

 

a glass pitcher, the tumbler

turned down, by which

 

a key is lying – And the

immaculate white bed

 

A Janela para o Jardim

(Daniel F. Gerhartz: pintor norte-americano)

 

Nantucket


Flores através da janela

lilases e amarelas


alteradas por cortinas brancas –

Cheiro de limpeza –


Brilho do sol ao cair da tarde –

Sobre a bandeja de vidro

 

um jarro de vidro, o copo

virado para baixo, junto ao qual


repousa uma chave – E o

imaculado leito branco


Referência:

WILLIAMS, William Carlos. Nantucket. In: MAYES, Frances. The discovery of poetry: a field guide to reading and writing poems. 1st Harvest ed. San Diego, CA: Harvest & Harcout, 2001. p. 75.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Hans Magnus Enzensberger - Defesa dos Lobos contra os Cordeiros

Enzensberger, com todo aquele sarcasmo que lhe é característico, inculpa as vítimas – os cordeiros – pela opressão e exploração que sofrem, malsinando-as por ajudar e apoiar ativamente os perpetradores daquelas arbitrariedades – os lobos –, permitindo-lhes governar: haveria exemplo melhor do que o do maluco de plantão em Pindorama, eleito mediante um mar de “fake news” propagadas por robôs em grupos do WhatsApp e nas redes sociais?!

Nesse sentido, as vítimas – no caso pátrio, em especial as que pertencem às classes menos providas de recursos, que se deixam manipular mais facilmente por políticos inescrupulosos – não teriam do que se lamentar ou contra o que protestar, pois que as coisas decorrem de suas próprias decisões: na hipótese de não mudança no comportamento dos cordeiros, seria de se esperar que os governantes, de modo voluntário, renunciassem às sinecuras de que dispõem em razão dos cargos que ocupam?!

J.A.R. – H.C.

 

Hans Magnus Enzensberger

(n. 1939)

 

Verteidigung der Wölfe

gegen die Lämmer

 

Soll der Geier Vergißmeinnicht fressen?

Was verlangt ihr vom Schakal,

daß er sich Häute; vom Wolf? Soll

er sich selber ziehen die Zähne?

Was gefällt euch nicht

an Politruks und an Päpsten,

was guckt ihr blöd aus der Wäsche

auf den verlogenen Bildschirm?

 

Wer näht denn dem General

den Blutstreif an seine Hosen? Wer

zerlegt vor dem Wucherer den Kapaun?

Wer hängt sich stolz das Blechkreuz

vor den knurrenden Nabel? Wer

nimmt das Trinkgeld, den Silberling,

den Schweigepfennig? Es gibt

viel Bestohlene, wenig Diebe; wer

applaudiert ihnen denn, wer

steckt die Abzeichen an, wer

lechzt denn nach Lüge?

 

Seht in den Spiegel: feig,

scheuend die Mühsal der Wahrheit,

dem Lernen abgeneigt, das Denken

überantwortend den Wölfen,

der Nasenring euer teuerster Schmuck,

keine Täuschung zu dumm, kein Trost

zu billig, jede Erpressung

ist für euch noch zu milde.

 

Ihr Lämmer, Schwestern sind,

mit euch verglichen, die Krähen:

ihr blendet einer den andern.

Brüderlichkeit herrscht

unter den Wölfen:

sie gehen in Rudeln.

 

Gelobt sein die Räuber; ihr,

einladend zur Vergewaltigung,

werft euch aufs faule Bett

des Gehorsams, Winselnd noch

lügt ihr, Zerrissen

wollt ihr werden, ihr

ändert die Welt nicht.

 

O Lobo e o Cordeiro

(Jean-Baptiste Oudry: pintor francês)

 

Defesa dos Lobos

contra os Cordeiros

 

Querem que o abutre coma miosótis?

O que exigem do chacal,

do lobo, que mude de pele? Querem

que ele mesmo extraia seus dentes?

O que é que não apreciam

nos comissários políticos e nos papas,

por que olham, feito burros,

o vídeo mentiroso?

 

Quem costura a faixa de sangue

nas calças do general? Quem

trincha, diante do agiota, o capão?

Quem pendura, orgulhoso, a cruz de lata

sobre o umbigo que ronca de fome? Quem

aceita a propina, a moeda de prata,

o centavo para calar-se? Há

muitos roubados, poucos ladrões; quem

os aplaude, quem

lhes põe insígnias no peito, quem

é sequioso de mentiras? 

 

Olhem-se no espelho: covardes,

temendo a fadiga da verdade,

sem vontade de aprender, entregando

o pensar aos lobos,

um anel no nariz como adorno preferido,

nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo

barato o suficiente, cada chantagem

ainda é clemente demais para vocês.

 

Ó cordeiros, irmãs

são as gralhas comparadas a vocês:

vocês se arrancam os olhos uns aos outros.

Fraternidade reina

entre os lobos:

andam em alcateias.

 

Louvados sejam os salteadores: vocês

convidam para o estupro

deitando-se no leito preguiçoso

da obediência. Mesmo gemendo

vocês mentem. Querem

ser devorados. Vocês

não mudam o mundo.


Referência:

ENZENSBERGER, Hans Magnus. Verteidigung der wölfe gegen die lämmer / Defesa dos lobos contra os cordeiros. Tradução de Kurt Scharf e Armindo Trevisan. In: __________. Eu falo dos que não falam: antologia. Edição bilíngue. Seleção dos textos de Kurt Scharf. Tradução de Kurt Scharf e Armindo Trevisan. Prefácio de Bärbel Gutzat. São Paulo, SP: Brasiliense, 1985. Em alemão e em português: p. 25-26.