Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Ana Rüsche - O poema branco

A solidão perpassa a vida da falante – vales entre picos semanais, remediados com “injeções de endorfina” (aparentemente metafóricas) –, que, para contorná-la, vai à busca de romances rasos, no caso vertente, junto a um amante do tipo “latin lover”: saídas semanais em motéis onde um grito seco apalpa-lhe a “morte úmida”.

Sente vontade de ser um “esquimó”, talvez para manter a frieza perante a vida e seus desencadeamentos afetivos – assim como muitos são os esquimós a navegar pelos ‘sites’ de relacionamentos na internet, tão somente em busca de emoções imediatas –, mas é essa mesma solidão que lhe trespassa com uma “cocaína negra com mel”, capaz de lhe trazer algum ânimo – perante o qual, pressente-se, não deixa de ser sem sentido a vida lúbrica que leva, mas carente de autêntico afeto.

 J.A.R. – H.C.

 

Ana Rüsche

(n. 1979)

 

O poema branco

 

e ela montada

no topo da bicicleta ergométrica

uma caixinha de música

laqueada como gelo

a rodar, a esperar

a agulha hipodérmica de endorfina

para capar seu coração.

 

um romance raso.

eu queria ser um esquimó

mas entre uma faísca e outra,

o frio da estroboscópica,

a solidão me dá picadas

uma cocaína negra com mel

que me anima.

 

minhas mortes são semanais.

em lençóis alugados por pernoite

no degelo de teus cabelos negros

de latin lover

e como você faz a tantas menininhas

teus dedos apalpam minha pequena

morte úmida

e lhe aplica um grito seco na canção

de rádio pela tarde

olhos pretos cheios de branco

 

mas agora é escuro

pela pia de mármore duro

ela derrama a borra de café

que se transforma em terra

que embala os natimortos de nossos sonhos

 

um romance raso.

e ela entediada roía unhas

na internet os esquimós

seus pés assustadoramente descalços.

 

No estúdio de arte: uma jovem se despindo

em frente ao artista

(Konstantin Razumov: pintor russo)


Referência:

RÜSCHE, Ana. O poema branco. In: VALLE, Camila do; PAVÓN, Cecilia (Sels.). Caos portátil: poesía contemporánea del Brasil. Edición bilingüe: Portugués x Español. Traducción de Cecilia Pavón. 1. ed. México, DF: EBL – Ediciones El Billar de Lucrecia, oct. 2007. p. 222 e 224. (‘Poesía Latinoamericana’)

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