A solidão perpassa a vida da falante – vales entre picos semanais, remediados com “injeções de endorfina” (aparentemente metafóricas) –, que, para contorná-la, vai à busca de romances rasos, no caso vertente, junto a um amante do tipo “latin lover”: saídas semanais em motéis onde um grito seco apalpa-lhe a “morte úmida”.
Sente vontade de ser um “esquimó”, talvez
para manter a frieza perante a vida e seus desencadeamentos afetivos – assim como
muitos são os esquimós a navegar pelos ‘sites’ de relacionamentos na internet,
tão somente em busca de emoções imediatas –, mas é essa mesma solidão que lhe trespassa
com uma “cocaína negra com mel”, capaz de lhe trazer algum ânimo – perante o
qual, pressente-se, não deixa de ser sem sentido a vida lúbrica que leva, mas carente
de autêntico afeto.
(n. 1979)
O poema branco
e ela montada
no topo da bicicleta ergométrica
uma caixinha de música
laqueada como gelo
a rodar, a esperar
a agulha hipodérmica de endorfina
para capar seu coração.
um romance raso.
eu queria ser um esquimó
mas entre uma faísca e outra,
o frio da estroboscópica,
a solidão me dá picadas
uma cocaína negra com mel
que me anima.
minhas mortes são semanais.
em lençóis alugados por pernoite
no degelo de teus cabelos negros
de latin lover
e como você faz a tantas menininhas
teus dedos apalpam minha pequena
morte úmida
e lhe aplica um grito seco na canção
de rádio pela tarde
olhos pretos cheios de branco
mas agora é escuro
pela pia de mármore duro
ela derrama a borra de café
que se transforma em terra
que embala os natimortos de nossos sonhos
um romance raso.
e ela entediada roía unhas
na internet os esquimós
seus pés assustadoramente descalços.
No estúdio de arte: uma jovem se despindo
em frente ao artista
(Konstantin Razumov: pintor russo)
Referência:
RÜSCHE, Ana. O poema branco. In: VALLE,
Camila do; PAVÓN, Cecilia (Sels.). Caos portátil: poesía contemporánea
del Brasil. Edición bilingüe: Portugués x Español. Traducción de Cecilia Pavón. 1. ed.
México, DF: EBL – Ediciones El Billar de Lucrecia, oct. 2007. p. 222 e 224.
(‘Poesía Latinoamericana’)
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