O fato de haver nomeado o poema como “Retrato” – e não “Autorretrato” – diz muito da intenção do poeta sevilhano em nele se mostrar o mais objetivamente possível, distanciando-se dos fatos e circunstâncias que maneja em suas linhas, numa perspectiva que se pretende de terceiro grau, mas que em razão do manifesto amálgama entre sujeito e objeto, nem sempre resulta desonerada de subjetividade.
Nota-se certa didática no fluir das estrofes do poema e, a cada três delas, em sequência, assentam-se: primeiramente, uma exposição de como seria o orador; depois, a forma como a sua arte se revela; e, por fim, o relacionamento mantido com terceiros e consigo mesmo. Desse modo, tem-se um retrato profundo e honesto de Machado, meio suscetível e merencório, mais especulativo que físico, com planos a partir de vários ângulos – vida e morte, poesia e labuta, amor e cansaço –, a externar o que julga ser o que melhor o qualifica.
J.A.R. – H.C.
Antonio Machado
(1875-1939)
Retrato
Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,
y un huerto claro donde madura el limonero;
mi juventud, veinte años en tierras de Castilla;
mi historia, algunos casos que recordar no quiero.
Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido
– ya conocéis mi torpe aliño indumentário –,
más recibí la flecha que me asignó Cupido,
y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.
Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,
pero mi verso brota de manantial sereno;
y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina,
soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.
Adoro la hermosura, y en la moderna estética
corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;
mas no amo los afeites de la actual cosmética,
ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.
Desdeño las romanzas de los tenores huecos
y el coro de los grillos que cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos,
y escucho solamente, entre las voces, una.
¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera
mi verso, como deja el capitán su espada:
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.
Converso con el hombre que siempre va conmigo
– quien habla solo espera hablar a Dios un día –;
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.
Y al cabo, nada os debo; me debéis cuanto he
escrito.
A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.
Y cuando llegue el día del último viaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.
Crianças num jardim
(Władysław Podkowiński: pintor polonês)
Retrato
Minha infância são memórias de um pátio sevilhano,
e um horto claro onde madura o limoeiro;
juventude, vinte anos em solo castelhano;
minha história, alguns casos que relembrar não
quero.
Nem sedutor Mañara, nem Bradomín fui eu (1)
– já conheceis meu torpe alinho ao me compor –,
mas recebi a flecha que Cupido escolheu,
e amei quanto elas podem mostrar de acolhedor.
Há em minhas veias sangue de origem jacobina,
porém meu verso brota de uma serena fonte;
e, mais que homem correto que sabe sua doutrina,
eu sou, no bom sentido desta palavra, bom.
Ou adoro a beleza, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do jardim de Ronsard;
mas não amo as pomadas desta atual cosmética,
nem sou uma das aves do novo gai-trinar. (2)
Escarneço as romanças do tenor indiscreto
e o coro desses grilos que cantam para a lua.
A distinguir detenho-me as vozes de seus ecos,
e escuro tão-somente, em meio às vozes, uma.
Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar quisera
meu verso como deixa o capitão a espada:
famosa pela mão viril que a soerguera,
não pelo douto ofício do ferreiro estimada.
Converso com o homem que sempre vai comigo
– quem fala a sós espera falar a Deus um dia –;
meu solilóquio é fala com este bom amigo
que me ensinou o segredo de minha filantropia.
E ao fim, nada vos devo; deveis-me meus escritos.
A meu trabalho acorro, pago com meu dinheiro
a roupa que me cobre e a casa onde eu habito,
o pão que me alimenta e a cama onde me deito.
E quando chegue o dia da última viagem,
e esteja a ir-se a nave que nunca há de tornar,
me encontrareis a bordo bem leve de bagagem,
quase despido, como vão os filhos do mar.
Notas:
(1) Miguel Mañara (1627-1679) foi um nobre e filantropo espanhol, nascido em Sevilha como Machado, cuja juventude, segundo suas próprias palavras, teria sido dedicada ao vício e à galanteria; já o Marquês de Bradomín é personagem de uma peça do escritor espanhol Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), aparecendo ainda em várias de suas sonatas novelescas, comportando-se sempre como um Don Juan.
(2) Manteve-se a raiz aditada pelo tradutor à palavra composta – “gai-trinar” –, que sugere apego à conotação originária do termo – alegre, jovial – e não à sexual – como nos dias presentes; assim, o que Machado pretenderia declarar é que não pertence ao grupo de poetas a veicular uma álacre poesia, porém oca, desprovida de conteúdo, infecunda.
Referência:
MACHADO, Antonio. Retrato / Retrato.
Tradução de Marco Aurélio Pinotti Catalão. In: __________. Obra poética:
antología y traducción. Obra Poética: antologia e tradução. Estudo
introdutório, antologia e tradução comentada por Marco Aurélio Pinotti Catalão.
Brasília, DF: Embajada da España. Consejería de Educación, 2005. Em espanhol:
130 e 132; em português: 131 e 133. (Colección ‘Orellana’, nº 16)
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