Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Antonio Machado - Retrato

O fato de haver nomeado o poema como “Retrato” – e não “Autorretrato” – diz muito da intenção do poeta sevilhano em nele se mostrar o mais objetivamente possível, distanciando-se dos fatos e circunstâncias que maneja em suas linhas, numa perspectiva que se pretende de terceiro grau, mas que em razão do manifesto amálgama entre sujeito e objeto, nem sempre resulta desonerada de subjetividade.

Nota-se certa didática no fluir das estrofes do poema e, a cada três delas, em sequência, assentam-se: primeiramente, uma exposição de como seria o orador; depois, a forma como a sua arte se revela; e, por fim, o relacionamento mantido com terceiros e consigo mesmo. Desse modo, tem-se um retrato profundo e honesto de Machado, meio suscetível e merencório, mais especulativo que físico, com planos a partir de vários ângulos – vida e morte, poesia e labuta, amor e cansaço –, a externar o que julga ser o que melhor o qualifica.

J.A.R. – H.C.

 

Antonio Machado

(1875-1939)

 

Retrato

 

Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,

y un huerto claro donde madura el limonero;

mi juventud, veinte años en tierras de Castilla;

mi historia, algunos casos que recordar no quiero.

 

Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido

– ya conocéis mi torpe aliño indumentário –,

más recibí la flecha que me asignó Cupido,

y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.

 

Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,

pero mi verso brota de manantial sereno;

y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina,

soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.

 

Adoro la hermosura, y en la moderna estética

corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;

mas no amo los afeites de la actual cosmética,

ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.

 

Desdeño las romanzas de los tenores huecos

y el coro de los grillos que cantan a la luna.

A distinguir me paro las voces de los ecos,

y escucho solamente, entre las voces, una.

 

¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera

mi verso, como deja el capitán su espada:

famosa por la mano viril que la blandiera,

no por el docto oficio del forjador preciada.

 

Converso con el hombre que siempre va conmigo

– quien habla solo espera hablar a Dios un día –;

mi soliloquio es plática con ese buen amigo

que me enseñó el secreto de la filantropía.

 

Y al cabo, nada os debo; me debéis cuanto he escrito.

A mi trabajo acudo, con mi dinero pago

el traje que me cubre y la mansión que habito,

el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.

 

Y cuando llegue el día del último viaje,

y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,

me encontraréis a bordo ligero de equipaje,

casi desnudo, como los hijos de la mar.

 

Crianças num jardim

(Władysław Podkowiński: pintor polonês)

 

Retrato

 

Minha infância são memórias de um pátio sevilhano,

e um horto claro onde madura o limoeiro;

juventude, vinte anos em solo castelhano;

minha história, alguns casos que relembrar não quero.

 

Nem sedutor Mañara, nem Bradomín fui eu (1)

– já conheceis meu torpe alinho ao me compor –,

mas recebi a flecha que Cupido escolheu,

e amei quanto elas podem mostrar de acolhedor.

 

Há em minhas veias sangue de origem jacobina,

porém meu verso brota de uma serena fonte;

e, mais que homem correto que sabe sua doutrina,

eu sou, no bom sentido desta palavra, bom.

 

Ou adoro a beleza, e na moderna estética

cortei as velhas rosas do jardim de Ronsard;

mas não amo as pomadas desta atual cosmética,

nem sou uma das aves do novo gai-trinar. (2)

 

Escarneço as romanças do tenor indiscreto

e o coro desses grilos que cantam para a lua.

A distinguir detenho-me as vozes de seus ecos,

e escuro tão-somente, em meio às vozes, uma.

 

Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar quisera

meu verso como deixa o capitão a espada:

famosa pela mão viril que a soerguera,

não pelo douto ofício do ferreiro estimada.

 

Converso com o homem que sempre vai comigo

– quem fala a sós espera falar a Deus um dia –;

meu solilóquio é fala com este bom amigo

que me ensinou o segredo de minha filantropia.

 

E ao fim, nada vos devo; deveis-me meus escritos.

A meu trabalho acorro, pago com meu dinheiro

a roupa que me cobre e a casa onde eu habito,

o pão que me alimenta e a cama onde me deito.

 

E quando chegue o dia da última viagem,

e esteja a ir-se a nave que nunca há de tornar,

me encontrareis a bordo bem leve de bagagem,

quase despido, como vão os filhos do mar.

 

Notas:

(1) Miguel Mañara (1627-1679) foi um nobre e filantropo espanhol, nascido em Sevilha como Machado, cuja juventude, segundo suas próprias palavras, teria sido dedicada ao vício e à galanteria; já o Marquês de Bradomín é personagem de uma peça do escritor espanhol Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), aparecendo ainda em várias de suas sonatas novelescas, comportando-se sempre como um Don Juan.

(2) Manteve-se a raiz aditada pelo tradutor à palavra composta – “gai-trinar” –, que sugere apego à conotação originária do termo – alegre, jovial – e não à sexual – como nos dias presentes; assim, o que Machado pretenderia declarar é que não pertence ao grupo de poetas a veicular uma álacre poesia, porém oca, desprovida de conteúdo, infecunda.

Referência:

MACHADO, Antonio. Retrato / Retrato. Tradução de Marco Aurélio Pinotti Catalão. In: __________. Obra poética: antología y traducción. Obra Poética: antologia e tradução. Estudo introdutório, antologia e tradução comentada por Marco Aurélio Pinotti Catalão. Brasília, DF: Embajada da España. Consejería de Educación, 2005. Em espanhol: 130 e 132; em português: 131 e 133. (Colección ‘Orellana’, nº 16)

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