O poeta se questiona sobre as razões pelas quais haveria de escrever linhas de poesia sobre o sofrimento, quando a miséria humana, v.g., nas ruas de Salvador (BA) se mostra tão dominante e opressora: o dilema seria equivalente ao que se teria, com a casa em chamas, entre salvar o gato ou o Rembrandt, aplicando-se a solução ao contexto, agora, já dos “novos escravos”.
Carver reconhece que, de qualquer maneira, um dia apodrecerá sob a terra com a sua companheira, quando então tais dilemas já não farão qualquer sentido. Não tendo nem gato nem obra de arte a preservar, em tese, optaria por vivenciar dias mais amenos em sua terra. Mas o fato é que o poeta prefere dar à poesia a derradeira palavra, nestes versos tão viscerais sobre a folha em branco quanto os fantasmas dos escravos, no velho casario da capital baiana.
“Tristes trópicos”. “Triste Bahia”. Há quem prefira salvar o incêndio, em vez de um ser vivo ou uma obra de arte!
J.A.R. – H.C.
Raymond Carver
(1938-1988)
Bahia, Brazil
The wind is level now. But pails of rain
fell today, and the day before,
and the day before that, all the way back
to Creation. The buildings
in the old slave quarter are dissolving,
and nobody cares. Not the ghosts
of the old slaves, or the young.
The water feels good on their whipped backs.
They could cry with relief.
No sunsets in this place. Light one minute,
and then the stars come out.
We could look all night in vain
for the Big Dipper. Down here
the Southern Cross is our sign.
I’m sick of the sound of my own voice!
Uneasy, and dreaming
of rum that could split my skull open.
There’s a body lying on the stairs.
Step over it. The lights in the tower
have gone out. A spider hops from the man’s
hair. This life. I’m saying it’s one
amazing thing after the other.
Lines of men in the street,
as opposed to lines of poetry.
Choose! Are you guilty or not guilty?
What else have you? he answered.
Well, say the house was burning.
Would you save the cat or the Rembrandt?
That’s easy. I don’t have a Rembrandt,
and I don’t have a cat. But I have
a sorrel horse back home
that I want to ride once more
into the high country.
Soon enough we’ll rot under the earth.
No truth to this, just a fact.
We who gave each other so much
happiness while alive –
we’re going to rot. But we won’t
rot in this place. Not here.
Arms shackled together.
Jesus, the very idea of such a thing!
This life. These shackles.
I shouldn’t bring it up.
Aquarela: candomblé
(Carybé: artista argento-brasileiro)
Bahia, Brasil
O vento agora está calmo. Mas baldes de chuva
caíram hoje, assim como ontem,
e anteontem, e todos os dias
desde a Criação. Os edifícios
no velho bairro escravo se dissolvem,
e ninguém liga. Não os fantasmas
dos velhos escravos, ou dos novos.
A água é um prazer em suas costas laceradas.
Eles poderiam chorar de alívio.
Não há pôr do sol neste lugar. Num minuto está
claro
e logo as estrelas aparecem.
Poderíamos procurar a noite inteira em vão
pela Ursa Maior. Aqui embaixo,
o Cruzeiro do Sul é nosso guia.
Estou cansado do som da minha própria voz!
Inquieto, e sonhando
com essa cachaça que poderia rachar o meu crânio.
Há um corpo jogado nas escadas.
Passe por cima dele. As luzes na torre
se apagaram. Uma aranha salta do cabelo
do homem. Esta vida. Quero dizer que é
um espanto atrás do outro.
Filas de homens na rua,
em vez de linhas de poesia.
Escolha! Você é culpado ou inocente?
E tem outra opção?, ele respondeu.
Bem, digamos que a casa estivesse em chamas.
Você salvaria o gato ou o Rembrandt?
Essa é fácil. Não tenho um Rembrandt
e não tenho um gato. Mas tenho
em minha terra um cavalo alazão
que quero cavalgar mais uma vez
em direção às montanhas.
Muito em breve apodreceremos sob a terra.
Nenhuma verdade quanto a isso, apenas um fato.
Nós que demos um ao outro tanta
felicidade enquanto vivos –
nós apodreceremos. Mas não
neste lugar. Não aqui.
Braços acorrentados juntos.
Deus, a simples ideia de tal coisa!
Esta vida. Estas correntes.
Eu não devia falar disso.
Referência:
CARVER, Raymond. Bahia, Brazil / Bahia,
Brasil. Tradução de Cide Piquet. In: __________. Esta vida: poemas
escolhidos. Seleção e tradução de Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed. São
Paulo, SP: Editora 34, 2017. Em inglês: p. 184-185; em português: p. 109-110.
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