A voz poética, neste poema de Mistral, discorre sobre a confecção de um barro de argila, com a finalidade de nele se guardarem as cinzas de seu “esposo” – o que, em termos biográficos, pelo menos até onde se saiba, não corresponde à história de vida da autora chilena, jamais casada nalgum tempo –, levando-nos a conjecturar sobre a eventual existência de um relacionamento platônico.
Considerando não se tratar de um vaso de “ouro ardente”, tampouco “ânfora pagã”, o poema poderia sugerir, ainda, conexão com as preleções de humildade e de fé cristãs, ostensivas na doutrina abraçada por Mistral e tantas vezes refletidas em sua obra poética: percebe-se, claramente, certa intertextualidade entre o teor de algumas linhas do poema e a ideia de criação do homem a partir do barro, segundo o Gênesis.
J.A.R. – H.C.
Gabriela Mistral
(1889-1957)
El vaso
Yo sueño con un vaso humilde y simple arcilla,
que guarde tus cenizas cerca de mis miradas;
y la pared del vaso te será mi mejilla,
y quedarán mi alma y tu alma apaciguadas.
No quiero espolvorearlas en vaso de oro ardiente,
ni en la ánfora pagana que carnal línea ensaya:
sólo un vaso de arcilla te ciña simplemente,
humildemente, como un pliegue de mi saya.
En una tarde de éstas recogeré la arcilla
por el río, y lo haré con pulso tembloroso.
Pasarán las mujeres cargadas de gavillas,
y no sabrán que amaso el lecho de un esposo.
El puñado de polvo, que cabe entre mis manos,
se verterá sin ruido, como una hebra de llanto.
Yo sellaré este vaso con beso sobrehumano,
y mi mirada inmensa será tu único manto!
Vaso de argila
(Sallie Wysocki: artista norte-americana)
O vaso
Eu sonho com um vaso de humilde e pura argila,
que guarde tuas cinzas perto de meu olhar;
e meu rosto terás na parede ao senti-la,
e tua alma e a minha hão de se apaziguar.
Não quero despejá-las em vaso de ouro ardente
ou ânfora pagã ao carnal compelida:
só um vaso de argila cinja-te simplesmente,
humilde como a saia com que estou vestida.
Recolherei do rio, numa tarde aprazada,
a argila com meu pulso trêmulo e ansioso.
Passarão as mulheres, de feixes carregadas,
sem saber que eu amasso o leito de um esposo.
Um punhado de pó, que cabe em minha mão,
se verterá sem rumor, como um fio de pranto.
Meu beijo sobre-humano selará qualquer vão,
e só um olhar imenso terás como teu manto!
Referência:
MISTRAL, Gabriela. El vaso / O vaso.
Tradução de Ruth Sylvia de Miranda Salles. In: MISTRAL, Gabriela; MEIRELES,
Cecília. Poemas. Ensaios de Cecília Meireles e Adriana Valdés. Poemas
traduzidos por Ruth Sylvia de Miranda Salles (Esp.-Port.) e Patricia Tejeda
(Port.-Esp.). Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Letras; Santiago, CL:
Academia Chilena de la Lengua, 2003. Em espanhol: p. 52; em português: p. 53.
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