A voz poética de Karr reflete as contingências que configurariam os traços de uma “metafísica do mal” – o lado pouco ou nada venturoso da vida, ou melhor, a perda de pessoas queridas, o sofrimento, o desencanto e a morte –, enquadrando-a numa perspectiva mais compreensiva, cristã talvez, na qual a dor e o infortúnio possam engendrar paralelos redentores.
O prolator (ou a prolatora) da mensagem dá-nos ciência de que acabara de perder o seu mais antigo amigo – o quinto em cinco anos –, em razão de um câncer que lhe corroera o fígado, e muito lhe apraz elaborar, em seu tributo, um derradeiro encômio que, todavia – diversamente ao sentido assentado por Chico Buarque –, não lhe “vem de forma assim, tão caudalosa”. (rs)
Ao fim, o(a) falante, confrontando-se amiúde com o mistério da morte, percebe que não pode descuidar de dar bom andamento à sua própria vida, que flui indômita sob a arcada do tempo, mensurável pelo tique-taque do relógio de pulso em uso, a replicar as batidas de seu coração – perduráveis, é claro, pelo lapso que lhe reservar o próprio fado.
J.A.R. – H.C.
Mary Karr
(n. 1955)
Métaphysique du Mal
for Patti Mora
Sometimes in the quadrangled globe you feel
impossibly small, a mere pushpin with face
embossed on top, jabbed in place.
Say it’s night in the kitchen, and those sprawled
pages
hold notes for your oldest friend’s funeral – your
fifth
eulogy in five years. Bach’s
measuring out cool intervals of pain.
You stand too long in the freezerspill
of smoky Arctic twilight – rows of plastic boxes
old soups and gravies
furred with frost, everything glazed in place.
And in the fridge, how long has that stripped
carcass
shriveled there, legs widespread?
In the pantry, the lychee nuts eyeball you,
aloof in their ancient miasma of syrup.
By dawn, pantries yawn on all sides. Bach’s shut
off.
Every dog-eared tome has been thumbed.
The single page says only, I had a friend who died.
Cancer
ate her liver out. In your Timex
the noise shifts, the minuscule hammers
start tapping out now, now abruptly
fast.
Visita a um amigo enfermo
(Kyriak Kostandi: pintor ucraniano)
para Patti Mora
Por vezes, no globo quadrangular, sentes-te
impossivelmente pequeno, um mero alfinete com o
rosto
em relevo no topo, espetado no lugar.
Digamos que é noite na cozinha, e aquelas páginas
esparramadas
contêm anotações para o funeral de seu mais velho
amigo
– seu quinto
panegírico em cinco anos. Bach está
a mensurar os frios intervalos da dor.
Passas muito tempo a esperar que se desvaneça no
freezer
a ártica e esfumada névoa – filas de caixas de
plástico
com velhas sopas e caldos
incrustadas de gelo, tudo sob cristais no lugar.
E na geladeira, há quanto tempo aquela carcaça
despojada
e engelhada ali, pernas estendidas?
Na despensa, as nozes de lichia miram-te fixamente,
reservadas em seu antigo miasma de xarope.
Ao amanhecer, as despensas bocejam de todos os
lados.
Bach está desligado.
Cada tomo com dobras nas páginas foi manuseado.
A única página diz apenas, ‘Tive um amigo que
faleceu’.
O câncer
corroeu-lhe o fígado. Em seu Timex
o ruído se altera, seus minúsculos percussores
começam a dar leves batidas agora, agora abruptamente
rápidas.
Referência:
KARR, Mary. Métaphysique du mal. In:
__________. Sinners welcome: poems. New York, NY: HarperCollins
Publishers Inc., sep. 2007. p. 8. (HarperCollins e-books)
Que poema forte, meu amigo. Quanta amargura e quanta poesia derramada com tristeza ao longo da respiração de cada verso. Parabéns pela escolha! Saúdo, através do blog a poesia surpreendente de Mary Karr, que sofrendo cada verso, eterniza seus amigos mortos.
ResponderExcluirPrezado Geraldo,
ExcluirAgradeço-lhe pelo comentário e, tanto mais, pelo juízo que expressa em face da beleza pungente dos versos da poetisa norte-americana.
João A. Rodrigues