Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Mary Karr - Métaphysique du Mal

A voz poética de Karr reflete as contingências que configurariam os traços de uma “metafísica do mal” – o lado pouco ou nada venturoso da vida, ou melhor, a perda de pessoas queridas, o sofrimento, o desencanto e a morte –, enquadrando-a numa perspectiva mais compreensiva, cristã talvez, na qual a dor e o infortúnio possam engendrar paralelos redentores.

O prolator (ou a prolatora) da mensagem dá-nos ciência de que acabara de perder o seu mais antigo amigo – o quinto em cinco anos –, em razão de um câncer que lhe corroera o fígado, e muito lhe apraz elaborar, em seu tributo, um derradeiro encômio que, todavia – diversamente ao sentido assentado por Chico Buarque –, não lhe “vem de forma assim, tão caudalosa”. (rs)

Ao fim, o(a) falante, confrontando-se amiúde com o mistério da morte, percebe que não pode descuidar de dar bom andamento à sua própria vida, que flui indômita sob a arcada do tempo, mensurável pelo tique-taque do relógio de pulso em uso, a replicar as batidas de seu coração – perduráveis, é claro, pelo lapso que lhe reservar o próprio fado.

J.A.R. – H.C.

 

Mary Karr

(n. 1955)

 

Métaphysique du Mal

 

for Patti Mora

 

Sometimes in the quadrangled globe you feel

impossibly small, a mere pushpin with face

embossed on top, jabbed in place.

 

Say it’s night in the kitchen, and those sprawled pages

hold notes for your oldest friend’s funeral – your fifth

eulogy in five years. Bach’s

measuring out cool intervals of pain.

 

You stand too long in the freezerspill

of smoky Arctic twilight – rows of plastic boxes

old soups and gravies

furred with frost, everything glazed in place.

And in the fridge, how long has that stripped carcass

shriveled there, legs widespread?

In the pantry, the lychee nuts eyeball you,

aloof in their ancient miasma of syrup.

 

By dawn, pantries yawn on all sides. Bach’s shut off.

Every dog-eared tome has been thumbed.

The single page says only, I had a friend who died. Cancer

ate her liver out. In your Timex

 

the noise shifts, the minuscule hammers

start tapping out now, now abruptly fast.

 

Visita a um amigo enfermo

(Kyriak Kostandi: pintor ucraniano)

 

Métaphysique du Mal

 

para Patti Mora

 

Por vezes, no globo quadrangular, sentes-te

impossivelmente pequeno, um mero alfinete com o rosto

em relevo no topo, espetado no lugar.

 

Digamos que é noite na cozinha, e aquelas páginas

esparramadas

contêm anotações para o funeral de seu mais velho amigo

– seu quinto

panegírico em cinco anos. Bach está

a mensurar os frios intervalos da dor.

 

Passas muito tempo a esperar que se desvaneça no freezer

a ártica e esfumada névoa – filas de caixas de plástico

com velhas sopas e caldos

incrustadas de gelo, tudo sob cristais no lugar.

E na geladeira, há quanto tempo aquela carcaça despojada

e engelhada ali, pernas estendidas?

Na despensa, as nozes de lichia miram-te fixamente,

reservadas em seu antigo miasma de xarope.

 

Ao amanhecer, as despensas bocejam de todos os lados.

Bach está desligado.

Cada tomo com dobras nas páginas foi manuseado.

A única página diz apenas, ‘Tive um amigo que faleceu’.

O câncer

corroeu-lhe o fígado. Em seu Timex

 

o ruído se altera, seus minúsculos percussores

começam a dar leves batidas agora, agora abruptamente

rápidas.


Referência:

KARR, Mary. Métaphysique du mal. In: __________. Sinners welcome: poems. New York, NY: HarperCollins Publishers Inc., sep. 2007. p. 8. (HarperCollins e-books)

 

2 comentários:

  1. Que poema forte, meu amigo. Quanta amargura e quanta poesia derramada com tristeza ao longo da respiração de cada verso. Parabéns pela escolha! Saúdo, através do blog a poesia surpreendente de Mary Karr, que sofrendo cada verso, eterniza seus amigos mortos.

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    1. Prezado Geraldo,
      Agradeço-lhe pelo comentário e, tanto mais, pelo juízo que expressa em face da beleza pungente dos versos da poetisa norte-americana.
      João A. Rodrigues

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