À espera redentora do retorno de Cristo a arrastar por um cordel a serpente do pecado, finalmente vencida, segue o ofício humano sobre a terra, na expectativa de que, num certo dia – tal é a utopia do falante! –, os homens venham a se fundir numa única família, em unidade assegurada por um coração capaz de congregar as duas faces antípodas neles existentes – os anjos das luzes e das trevas.
Alegria e sofrimento, ternura e hostilidade, o róseo e o vermelho, o amor e o ódio, dicotomias que existem em cada um de nós, mas que somos instados a contemporizá-las, para podermos manter um convívio fraterno em nossa lida. Tal como na composição “O bem e o mal”, de Danilo Caymmi e Dudu Falcão: “Eu guardo em mim / o deus, o louco, o santo / o bem e o mal”.
J.A.R. – H.C.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Ofício Humano
As harpas da manhã vibram suaves e róseas.
O poeta abre seu arquivo – o mundo –
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejas reajustadas na unidade.
É preciso reunir o dia e a noite,
Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o
criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos
clarins do sangue.
Esperemos na angústia e no tremor o fim dos tempos,
Quando os homens se fundirem numa única família,
Quando ao separar de novo a luz das trevas
O Cristo Jesus vier sobre a nuvem,
Arrastando por um cordel a antiga Serpente vencida.
Em: “Poesia Liberdade” (1943-1945)
Orações matutinas na Rua da Caridade: Victoria
(Marvic Muscat: pintor maltês)
Referência:
MENDES, Murilo. Ofício humano. In:
__________. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar,
1995. 408.
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