Há muito de surreal e fantasioso neste
poema de Strand, tendo como sítio uma biblioteca: o falante passa a “comer”
poesia e os efeitos daí decorrentes perturbam a bibliotecária. Com efeito, o
ente lírico se transforma num homem novo, ou melhor, num cão e começa a lamber-lhe
a mão, levando-a, por sua vez, a reagir aos gritos, pois tudo lhe parece estar
além do seu entendimento acerca do que sucede.
A poesia teria o condão de suscitar uma
energia indômita, indomesticada, incontrolada, como a dos “cães” que habitam o “porão”
do inconsciente: a tinta das páginas, onde impressos os poemas, primeiramente
escorre pelos cantos da boca do poeta, logo mistura-se à saliva e, por fim, passa
a denotar o amor devotado a quem possa dar um trato especial aos florilégios
poéticos.
J.A.R. – H.C.
Mark Strand
(1934-2014)
Eating Poetry
Ink runs from the
corners of my mouth.
There is no happiness
like mine.
I have been eating
poetry.
The librarian does
not believe what she sees.
Her eyes are sad
and she walks with
her hands in her dress.
The poems are gone.
The light is dim.
The dogs are on the
basement stairs and coming up.
Their eyeballs roll,
their blond legs burn
like brush.
The poor librarian
begins to stamp her feet and weep.
She does not
understand.
When I get on my
knees and lick her hand,
she screams.
I am a new man.
I snarl at her and
bark.
I romp with joy in
the bookish dark.
Retrato de Henri
Cordier
(Gustave Caillebotte:
pintor francês)
Comendo Poesia
A tinta escorre pelas
comissuras de minha boca.
Não há felicidade
igual à minha.
Tenho andado a comer
poesia.
A bibliotecária não
acredita no que vê.
Tem os olhos tristes
e caminha com as mãos
no vestido.
Os poemas desapareceram.
Tênue é a luz.
Os cães estão nas
escadas do porão e sobem.
Seus globos oculares
reviram-se,
as pernas fulvas
ardem-lhe como sarça.
A pobre bibliotecária
começa a bater os pés e a chorar.
Ela não compreende.
Ao ajoelhar-me e lamber-lhe
a mão,
põe-se aos gritos.
Sou um homem novo.
Solto-lhe grunhidos e
ladro.
Divirto-me
alegremente em meio à penumbra livresca.
Referência:
STRAND, Mark. Eating poetry. In:
ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st. ed.
New York, NY: Miramax Books, 2003. p. 449.
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