Pelo teor do que se descreve neste
final de ode, a poetisa encontrava-se talvez em Lisboa (PT), a contemplar as águas
do Tejo, quando, subitamente, alterou-se-lhe o estado de ânimo, fazendo-a atirar-se
ao chão – “imóvel tóxico do tempo” −, desejosa de que o seu corpo – e não a sua
personalidade, como em Fernando Pessoa – se dividisse em outros tantos heterônimos.
A propósito, ainda que as
circunstâncias por que passa estejam presas ao domínio do espaço e do tempo, o
que sucede na mente da poetisa é, de fato, a reverberação loquaz de um
exercício intelectivo, como na ode “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.”, do heterônimo pessoano Álvaro de Campos:
Tudo o que há dentro
de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro
de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo
que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e
os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse
dos nossos sentidos intelectuais.
J.A.R. – H.C.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
Final de uma ode
Acontece assim: tiro
as pernas do balcão de onde via um sol
de inverno se pondo
no Tejo e saio de fininho dolorosamente
dobradas as costas e
segurando o queixo e a boca com uma das
mãos. Sacudo a cabeça
e o tronco incontrolavelmente, mas de
maneira curta, curta,
entendem? Eu estava dando
gargalhadinhas e
agora estou sofrendo nosso próximo
falecimento, minhas
gargalhadinhas evoluíram para um
sofrimento meio
nojento, meio ocasional, sinto um dó extremo
do rato que se fere
no porão, ai que outra dor súbita, ai que
estranheza e que
lusitano torpor me atira de braços abertos
sobre as ripas do
cais ou do palco ou do quartinho. Quisera
dividir o corpo em
heterônimos – medito aqui no chão, imóvel
tóxico do tempo.
À beira da piscina do
harém
(Konstantin Razumov:
pintor russo)
Referência:
CESAR, Ana Cristina. Final de uma ode.
In: __________. A teus pés: prosa/poesia. 2. ed. 2. imp. São Paulo, SP:
Ática, 1998. p. 91.
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