O poeta contempla a tarde, com um céu encoberto
por nuvens e pássaros, e se põe a pensar sobre os elementos contingentes que conformam
o cenário: árvores e frutos, folhas e ventos, casas e galinhas, certa cadeira à
varanda e uma proposição sobre o estado de secura e lucidez desta em comparação
ao do próprio coração do falante – mais nítido na primeira.
Sob tal efêmero espetáculo as nuvens “trabalham”
e, em suas linhas, criam realidades que configuram silhuetas, delineamentos,
moldes de outras tantas formas próximas à realidade do observador – animais,
objetos, haveres −, o qual, à margem da tarde, melhor se habilita a conhecê-las,
porque – como se deduz −, pelo lado de dentro, sujeito e objeto perdem a nitidez
de seus respectivos contornos.
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(1930-2016)
O Trabalho das Nuvens
Esta varanda fica
à margem
da tarde. Onde nuvens
trabalham.
A cadeira não é tão
seca
e lúcida, como
o coração.
Só à margem da tarde
é que se conhece
a tarde: que são as
folhas de verde e
vento, e
o cacarejar da
galinha e as
casas sob um céu:
isso, diante
de olhos.
E os frutos?
e também os
frutos. Cujo crescer
altera
a verdade e a cor
dos céus. Sim, os frutos
que não comeremos,
também
fazem a tarde.
(a vossa
tarde, de que estou à
margem).
Há, porém, a tarde
do fruto. Essa
não roubaremos:
tarde
em que ele se propõe a
glória de
não mais ser fruto,
sendo-o
mais: de esplender,
não como astro, mas
como fruto que
esplende.
E a tarde futura onde
ele
arderá como um facho
efêmero!
Em verdade, é
desconcertante para
os homens o
trabalho das nuvens.
Elas não trabalham
acima das cidades:
quando
há nuvens não há
cidades: as nuvens
ignoram
se deslizam por sobre
nossa cabeça: nós é
que sabemos que
deslizamos sob elas:
as
nuvens cintilam, mas
não é para
o coração dos homens.
A tarde é
as folhas esperarem
amarelecer
e nós o observarmos.
E o mais é o pássaro
branco que
voa – e que só porque
voa e o vemos,
voa para vermos. O
pássaro que é
branco,
não porque ele o
queira nem
porque o
necessitemos: o pás-
saro que é branco
porque é branco.
Que te resta, pois,
senão
aceitar?
Por ti e pelo
pássaro pássaro.
Em: “A Luta Corporal e Novos Poemas” (1966)
Nuvens Magníficas
(Leonid Afremov:
pintor israelense)
Referência:
GULLAR, Ferreira. O trabalho das
nuvens. In: BISHOP, Elizabeth; BRASIL, Emanuel (Eds.). An anthology of twentieth-century brazilian poetry. A Bilingual Edition:
Portuguese and English. Sponsored by the Academy of American Poets. Middletown,
CT: Wesleyan University Press, 1972. p. 170 and 172.
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