Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Ferreira Gullar - O Trabalho das Nuvens

O poeta contempla a tarde, com um céu encoberto por nuvens e pássaros, e se põe a pensar sobre os elementos contingentes que conformam o cenário: árvores e frutos, folhas e ventos, casas e galinhas, certa cadeira à varanda e uma proposição sobre o estado de secura e lucidez desta em comparação ao do próprio coração do falante – mais nítido na primeira.

Sob tal efêmero espetáculo as nuvens “trabalham” e, em suas linhas, criam realidades que configuram silhuetas, delineamentos, moldes de outras tantas formas próximas à realidade do observador – animais, objetos, haveres −, o qual, à margem da tarde, melhor se habilita a conhecê-las, porque – como se deduz −, pelo lado de dentro, sujeito e objeto perdem a nitidez de seus respectivos contornos.

J.A.R. – H.C.

Ferreira Gullar
(1930-2016)

O Trabalho das Nuvens

Esta varanda fica
à margem
da tarde. Onde nuvens trabalham.

A cadeira não é tão seca
e lúcida, como
o coração.

Só à margem da tarde
é que se conhece
a tarde: que são as
folhas de verde e vento, e
o cacarejar da galinha e as
casas sob um céu: isso, diante
de olhos.

E os frutos?
e também os
frutos. Cujo crescer altera
a verdade e a cor
dos céus. Sim, os frutos
que não comeremos, também
fazem a tarde.
(a vossa
tarde, de que estou à margem).

Há, porém, a tarde
do fruto. Essa
não roubaremos:
tarde
em que ele se propõe a glória de
não mais ser fruto, sendo-o
mais: de esplender, não como astro, mas
como fruto que esplende.

E a tarde futura onde ele
arderá como um facho
efêmero!

Em verdade, é desconcertante para
os homens o
trabalho das nuvens.

Elas não trabalham
acima das cidades: quando
há nuvens não há
cidades: as nuvens ignoram
se deslizam por sobre
nossa cabeça: nós é que sabemos que
deslizamos sob elas: as
nuvens cintilam, mas não é para
o coração dos homens.

A tarde é
as folhas esperarem amarelecer
e nós o observarmos.

E o mais é o pássaro branco que
voa – e que só porque voa e o vemos,
voa para vermos. O pássaro que é
branco,
não porque ele o queira nem
porque o necessitemos: o pás-
saro que é branco
porque é branco.

Que te resta, pois, senão
aceitar?

Por ti e pelo
pássaro pássaro.

Em: “A Luta Corporal e Novos Poemas” (1966)

Nuvens Magníficas
(Leonid Afremov: pintor israelense)

Referência:

GULLAR, Ferreira. O trabalho das nuvens. In: BISHOP, Elizabeth; BRASIL, Emanuel (Eds.). An anthology of twentieth-century brazilian poetry. A Bilingual Edition: Portuguese and English. Sponsored by the Academy of American Poets. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1972. p. 170 and 172.

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