Depois de exaurida as forças de Whitman,
tudo quanto a ele disser respeito, uma vez transformado novamente no pó primordial,
passará a pertencer aos vivos, que o celebrarão levando-o impregnado em suas
botas: eis uma suma válida para este excerto de “Canção de mim mesmo”, vale
dizer, a seção de nº 52, a dar termo ao poema.
De um corpo já incapaz de se traduzir
diretamente pelo verbo, sobrevirá outras formas de matéria, vivas ou não –
plantas, animais, água ou grama −, que lançarão mão de suas palavras,
reciclando-as num fluxo interminável de memórias, ideias e pensamentos a serem
reabsorvidos pelos intrépidos leitores do futuro, em busca de iluminação ou de
sentido para as suas vidas.
J.A.R. – H.C.
Walt Whitman
(1819-1892)
The spotted hawk
swoops by and accuses me
The spotted hawk
swoops by and accuses me –
he complains of my
gab and my loitering.
I too am not a bit
tamed − I too am untranslatable;
I sound my barbaric
yawp over the roofs of the world.
The last scud of day
holds back for me;
It flings my likeness
after the rest, and true as any,
on the shadow’d
wilds;
It coaxes me to the
vapor and the dusk.
I depart as air − I
shake my white locks at the runaway sun;
I effuse my flesh in
eddies, and drift it in lacy jags.
I bequeath myself to
the dirt, to grow from the grass I love;
If you want me again,
look for me under your boot-soles.
You will hardly know
who I am, or what I mean;
But I shall be good
health to you nevertheless,
And filter and fibre
your blood.
Failing to fetch me
at first, keep encouraged;
Missing me one place,
search another;
I stop somewhere,
waiting for you.
Falcão com cauda rubra
(Shirley Bell:
pintora norte-americana)
O gavião pintado
mergulha e me acusa
O gavião pintado
mergulha e me acusa,
ele reclama de minha
tagarelice e de minha vadiagem.
Eu também não sou
muito domado, eu também
sou intraduzível,
Lanço no ar o meu
urro bárbaro sobre os telhados do mundo.
A última sombra do
dia espera por mim,
Ela arremessa minha
imagem atrás das outras e, tão verdadeira
quanto qualquer coisa
no agreste sombrio,
Me arrasta para o
vapor e para o crepúsculo.
Eu parto como o ar,
agito minhas mechas brancas
sob o sol fugitivo,
Derramo minha carne
em remoinhos e deixo-a à deriva
em saliências
rendilhadas.
Lego-me ao pó para
crescer da relva que amo,
Se queres me ver
novamente, procura-me grudado à sola
de tuas botas.
Dificilmente saberás
quem sou ou o que significo,
Mas hei de ser para
ti boa saúde assim mesmo,
E filtrarei e darei
fibra ao teu sangue.
Se não puderes me
encontrar na primeira vez,
mantém a esperança,
Não me achando em
certo lugar, procura em outro,
Fico em alguma parte
à tua espera.
Referências:
Em Inglês
WHITMAN, Walt. WHITMAN, Walt. Song of
myself: 52. The spotted hawk swoops by and accuses me. In: __________. The
portable Walt Whitman. Edited with an introduction by Michael Warner. New
York, NY: Penguin Books, 2004. p. 67.
Em Português
WHITMAN, Walt. Canção de mim mesmo: 52.
O gavião pintado mergulha e me acusa. Tradução de Luciano Alves Meira. In:
__________. Folhas de relva. Texto integral. Tradução e introdução de
Luciano Alves Meira. 2. ed. São Paulo (SP): Martin Claret, 2012. p. 107-108.
(Série Ouro: Coleção ‘A Obra-Prima de Cada Autor’; n. 42)
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