Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Patricia Hampl - Assim É Como Funciona a Memória

A memória é capaz de nos levar a momentos idos e vividos, com a mesma nitidez de um ensejo presente, fazendo-nos reagir emocionalmente como se estivéssemos vivenciando os fatos da vida aqui e agora – formaturas, casamentos, nascimentos, oportunidades de emprego –, ainda que muitas vezes ela nos traia, interpolando circunstâncias ou episódios que, originalmente, não revelavam conexões.

Óbvio está que, com o avançar da idade, as imagens que nos remanescem vão se tornando cada vez menos nítidas, desgastadas, descoloridas, porque ninguém está preservado à ação do tempo. E é aí que entra o inesperado contributo da imaginação, uma espécie de efeito compensador, necessário para que possamos manter a integridade psíquica. Autoengano? Que seja, contanto que permita perdurar um estado de felicidade! (rs)

J.A.R. – H.C.

Patricia Hampl
(n. 1946)

This Is How Memory Works

You are stepping off a train.
A wet blank night, the smell of cinders.
A gust of steam from the engine swirls
around the hem of your topcoat, around
the hand holding the brown leather valise,
the hand that, a moment ago, slicked back
the hair and then put on the fedora
in front of the mirror with the beveled
edges in the cherrywood compartment.

The girl standing on the platform
in the Forties dress
has curled her hair, she has
nylon stockings – no, silk stockings still.
Her shoulders are touchingly military,
squared by those shoulder pads
and a sweet faith in the Allies.
She is waiting for you.
She can be wearing a hat, if you like.

You see her first.
That’s part of the beauty:
you get the pure, eager face,
the lyrical dress, the surprise.
You can have the steam,
the crowded depot, the camel’s-hair coat,
real leather and brass clasps on the suitcase;
you can make the lights glow with
strange significance, and the black cars
that pass you are historical yet ordinary.

The girl is yours,
the flowery dress, the walk
to the streetcar, a fried egg sandwich
and a joke about Mussolini.
You can have it all:
you’re in that world, the only way
you’ll ever be there now, hired
for your silent hammer, to nail pictures
to the walls of this mansion
made of thinnest air.

Plataforma Gandhi sob chuva
(Bijay Biswal: artista indiano)

Assim É Como Funciona a Memória

Estás desembarcando de um trem.
Uma noite chuvosa e vazia, o cheiro de cinzas.
Uma lufada de vapor do motor gira
à volta da bainha do teu sobretudo, em torno
da mão que  segura a valise de couro marrom,
a mão que, há instantes, alinhou o cabelo
para trás  e então colocou o chapéu de feltro
diante do espelho com as bordas biseladas
no compartimento de madeira de cerejeira.

A moça parada na plataforma
com um vestido dos anos quarenta
tem o cabelo enrolado e usa
meias de náilon – não, meias de seda ainda.
Seus ombros são comovedoramente militares,
aprumados por aquelas ombreiras
e uma doce fé nos Aliados.
Ela está à tua espera.
Pode estar usando um chapéu, se quiseres.

Tu a avistas primeiro.
Isso é parte da beleza:
deparas com o rosto puro e ansioso,
o lírico vestido, a surpresa.
És capaz de notar o vapor,
a estação apinhada, o casaco de pelo de camelo,
o couro legítimo e os fechos de latão na mala;
podes incutir brilho de um estranho significado
às luzes, e fazer com que os carros pretos a passar
por ti sejam históricos, ainda que encontradiços.

Tua é a moça,
o vestido florido, a caminhada
até o bonde, um sanduíche de ovo frito
e uma piada sobre Mussolini.
Podes ter isso tudo:
vivenciar aquele mundo, a única forma mediante
a qual lá estarás agora, contratado em razão
de teu silencioso martelo, para fixar imagens
nas paredes dessa mansão
erigida do ar mais rarefeito.

Referência:

HAMPL, Patricia. This is how memory Works. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 236-237.

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