Não exatamente o que poderia sugerir, na físico-química, a Lei de
Lavoisier acerca da conservação da massa, neste poema do poeta alagoano o que
se leva à frente é a perspectiva de se manter intacto o corpo de uma mulher
virtuosa, ao amparo de um hipotético espírito capaz de sobreviver, de forma a que
o corpo e a alma se mantenham unidos por toda a eternidade.
Nos versos finais, percebe-se que o real interesse do ente lírico é
difundir a mensagem de que os homens devem disseminar na terra as virtudes
divinas, para que a essência das coisas permaneça: nesse plano, a palavra “matéria”
ganha um insuspeito sentido para além de toda a tangibilidade que lhe é
inerente, alcançando mesmo uma perspectiva com certo lastro ético.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Lima
(1893-1953)
A Conservação da Matéria
Embora as pedras do túmulo atestem que
estás morta,
e repouses como repousam os cadáveres,
o teu espírito sobrevive.
Temo que algum feiticeiro,
ou algum diabo ou algum vampiro o
corrompa;
e por isso, ó bem-amada, eu te
embalsamarei
para que teu corpo viva como tua alma,
e teu sorriso permaneça nos teus lábios
através da corrupção
de todas as coisas.
Desnudarei teu alvo corpo das
vestiduras tumulares
e o ungirei com teus perfumes
prediletos.
Conservarei suspensas as lâmpadas com
suas lucernas
e o azeite abençoado para manter as
lucernas.
Comporei com faixas de linho embebido
em óleo aromático
os teus seios que alimentaram milhares
de gerações de poetas.
Porei a máscara de ouro na fronte alta
e branca
que encheu os homens sequiosos do
espírito de Deus,
de sã prudência, de sabedoria e de
conhecimento.
Untarei os teus olhos com o verniz que
o
Princípio da Conservação me ensinou,
para que os homens vejam a pureza dos
teus ascendentes
desde Abel até hoje.
Convocarei as mulheres habilidosas a
tecerem
o jacinto, a púrpura e a escarlata
e tudo que se faz em tear
para vestir o teu tronco e o teu ventre
e tuas pernas
exceto tua cabeça e teus pés que serão
revestidos de ouro.
Enfeitarei tua túnica com as sombras
que teu corpo projetou
sobre os homens cansados.
Virão frotas com paus odoríferos,
marfim e
âmbar desconhecidos
para a cúpula do jazigo.
E todos os templos fúnebres
em honra dos sacerdotes de Baal, de
Moloc
ou dos modernos ídolos que irritam o
Senhor, serão demolidos;
e virão os turíbulos e suas taças e
suas jarras para o teu.
Não dilatarei as noites sem lua nem os
silêncios sem Deus,
e a solidão do mundo terá uma estatura
infinita.
Acaso entenderás, ó viajante,
as ordens que a intuição recebe dos
céus
para conservar na terra as virtudes de Deus?
Por ventura ao teu mando a essência das
coisas permanece?
Em: “A Túnica Inconsútil” (1938)
O enterro de Atalá
(Anne-Louis Girodet:
pintor francês)
Referência:
LIMA, Jorge de. A conservação da
matéria. In: __________. Obra poética.
Edição completa, em um volume, organizada por Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro:
Editora Getúlio Vargas, nov. 1949. p. 355-356.
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