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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Jorge de Lima - A Conservação da Matéria

Não exatamente o que poderia sugerir, na físico-química, a Lei de Lavoisier acerca da conservação da massa, neste poema do poeta alagoano o que se leva à frente é a perspectiva de se manter intacto o corpo de uma mulher virtuosa, ao amparo de um hipotético espírito capaz de sobreviver, de forma a que o corpo e a alma se mantenham unidos por toda a eternidade.

Nos versos finais, percebe-se que o real interesse do ente lírico é difundir a mensagem de que os homens devem disseminar na terra as virtudes divinas, para que a essência das coisas permaneça: nesse plano, a palavra “matéria” ganha um insuspeito sentido para além de toda a tangibilidade que lhe é inerente, alcançando mesmo uma perspectiva com certo lastro ético.

J.A.R. – H.C.

Jorge de Lima
(1893-1953)

A Conservação da Matéria

Embora as pedras do túmulo atestem que estás morta,
e repouses como repousam os cadáveres,
o teu espírito sobrevive.
Temo que algum feiticeiro,
ou algum diabo ou algum vampiro o corrompa;
e por isso, ó bem-amada, eu te embalsamarei
para que teu corpo viva como tua alma,
e teu sorriso permaneça nos teus lábios através da corrupção
de todas as coisas.
Desnudarei teu alvo corpo das vestiduras tumulares
e o ungirei com teus perfumes prediletos.
Conservarei suspensas as lâmpadas com suas lucernas
e o azeite abençoado para manter as lucernas.
Comporei com faixas de linho embebido em óleo aromático
os teus seios que alimentaram milhares de gerações de poetas.
Porei a máscara de ouro na fronte alta e branca
que encheu os homens sequiosos do espírito de Deus,
de sã prudência, de sabedoria e de conhecimento.
Untarei os teus olhos com o verniz que o
Princípio da Conservação me ensinou,
para que os homens vejam a pureza dos teus ascendentes
desde Abel até hoje.
Convocarei as mulheres habilidosas a tecerem
o jacinto, a púrpura e a escarlata
e tudo que se faz em tear
para vestir o teu tronco e o teu ventre e tuas pernas
exceto tua cabeça e teus pés que serão revestidos de ouro.
Enfeitarei tua túnica com as sombras que teu corpo projetou
sobre os homens cansados.
Virão frotas com paus odoríferos, marfim e
âmbar desconhecidos
para a cúpula do jazigo.
E todos os templos fúnebres
em honra dos sacerdotes de Baal, de Moloc
ou dos modernos ídolos que irritam o Senhor, serão demolidos;
e virão os turíbulos e suas taças e suas jarras para o teu.
Não dilatarei as noites sem lua nem os silêncios sem Deus,
e a solidão do mundo terá uma estatura infinita.
Acaso entenderás, ó viajante,
as ordens que a intuição recebe dos céus
para conservar na terra as virtudes de Deus?
Por ventura ao teu mando a essência das coisas permanece?

Em: “A Túnica Inconsútil” (1938)

O enterro de Atalá
(Anne-Louis Girodet: pintor francês)

Referência:

LIMA, Jorge de. A conservação da matéria. In: __________. Obra poética. Edição completa, em um volume, organizada por Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Editora Getúlio Vargas, nov. 1949. p. 355-356.

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