A seção “A Vigília”, aqui transcrita, é
a terceira e última parte do poema “Sugestões de um Jardim Público”, de Picchia,
antecedida, por conseguinte, pelas seções intituladas “Costureirinha” e “O Carrossel”,
todas a abordar distintas visões sobre o correr da vida: a perspectiva de um
amor pelo qual ansiosamente se espera, os prazeres infantis e a angústia da
morte circunvizinha.
Na seção em tela se recordam as
passagens bíblicas da Paixão de Cristo, em especial, a noite tormentosa,
anterior à sua crucificação, que Ele teria passado em Getsêmani – um horto ou
jardim localizado ao sopé do Monte das Oliveiras −, com os seus discípulos (Mateus
26:36): o arrepio de horror impregnado no espaço permite que a noite imensa verta
luz pelos poros das estrelas e, numa nuvem à parte, como no Calvário, “sangram
as cinco chagas do Cruzeiro”.
J.A.R. – H.C.
Menotti del Picchia
(1892-1988)
Sugestões de um Jardim Público
(A Vigília)
Percorro as alamedas
solitárias
como um Poeta antigo...
Um cisne parsifalesco
voga na água do lago
que parece o lenço da
Verônica
enxugando a face
pálida da lua...
Os salgueiros, cheios
de lágrimas verdes,
têm a atitude piedosa
de José d’Arimateia
quando cobria de
bálsamo o corpo do Cordeiro...
O jardim evoca o
horto de Getsêmani
onde o Senhor suou
sangue...
As árvores dormem, ao
luar, como os Discípulos.
O vento viola as
rosas
sacrilegamente, e há
um ciclo de beijos
como na noite das
Angústias Supremas...
Mãos invisíveis de memórias
ofertam
aos meus lábios
túmidos de mágoa
o cálice do meu
Horto...
Todos nós temos a
Vigília
nessa insônia
ambulante
dos passeios sem rumo
em parques solitários.
Um arrepio de horror
percorre a noite imensa,
que sua (*) luz pelos
poros das estrelas...
No Calvário de uma
nuvem
sangram as cinco
chagas do Cruzeiro.
Jardim Público em
Arles
(Vincent van Gogh:
pintor holandês)
Nota:
(*) Apenas
uma advertência: “sua” não diz respeito, aqui, ao pronome possessivo, senão à
conjugação do verbo “suar”, tendo por sujeito a “noite imensa”: esclareço que a grafia original do poema apresentava a grafia “su’a”,
junção de “sua” (do verbo suar) + “a”.
Referência:
PICCHIA, Menotti del. Sugestões de um jardim
público (a vigília). In: FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia da poesia brasileira. Lisboa,
PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 124.
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