Um afresco antitético, a começar pelo próprio título do poema, a enfatizar
a dicotomia morto/vivo: é que a poetisa retrata em palavras uma natureza-morta,
um conhecido gênero de pintura em que se representam coisas ou seres inanimados,
mas que, paradoxalmente passou a manifestar impulso e vitalidade, talvez fruto
da própria imaginação de Dal Farra.
Trata-se de arranjo em um terraço, sobre uma mesa preparada para o
almoço, onde tudo ali está disposto sobre a toalha já meio avariada pelas não
tencionadas pontadas de uma faca – maçãs e cerejas numa fruteira, peras e
azeitonas, além da bebida, é claro, tudo isso tendo o céu e o mar à volta. Mas
os elementos viventes em tal cenário são o voo de uma andorinha que põe tudo em
balanço, além do próprio ente lírico, deglutindo os acepipes e levando a bebida
aos lábios.
J.A.R. – H.C.
Maria Lúcia Dal Farra
(n. 1944)
Natureza-Morta Vivente
Culpa do delicado voo
da andorinha,
o desequilíbrio da
mesa
mete tremor nas
fruteiras
arremessa maçãs para
o Éden
faz cometa das
cerejas.
Flutua o brócolis em
regime de nave-mãe
enquanto põe embaraço
no impecável da
toalha de almoço
– já um tanto
alvoroçada e picotada
pela iminente
imaginação
da faca.
É verdade que nesse
terraço
(onde se perscruta o
limite entre mortos e vivos)
nada perturba o mar
que flui à deriva.
Tudo está plácido à
tona d’água
– e o mesmo se diz
daquilo que
(como o céu)
não sofre ranhuras
– ainda que abalado
pela alada imagem inicial.
Há uma pera no ar.
E duas azeitonas que
colho ao léu
mas com as quais mal
posso preparar o drinque:
álcool volatizado na
direção
do arremesso.
Quatro cerejas e uma andorinha
(Sarah Siltala:
pintora norte-americana)
Referência:
FARRA, Maria Lúcia Dal. Natureza-morta
vivente. In: __________. Alumbramentos.
1. ed. São Paulo, SP: Iluminuras, 2011. p. 70.
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