Num estilo de escrita que muito se parece com a dos surrealistas
franceses, como Breton (1896-1966) ou Tzara (1896-1963) – a propósito, Césaire
nasceu em Martinica, região ultramarina francesa –, este poema se plasma em
imagens nitidamente extraídas à tropicalidade das Pequenas Antilhas caribenhas,
ensolaradas e providas de um mar prodigiosamente belo.
Há colação de visões a opor sentidos como o gelo e o fogo, ou mesmo
referências que, ora certamente ora muito provavelmente, não fazem parte do
cenário natural da terra natal do poeta, suscitando a gênese de uma “realidade
paralela”. Além, é claro, de uma última referência ao açúcar da palavra “Brasil”,
decantado no “fundo do pântano” – um gênero inusitado de acoplamento de ideias capaz
de ser “explicado” de mil maneiras, mas que, paradoxalmente, poderia estar mais
além de qualquer redução a um plano racional ou inteligível.
J.A.R. – H.C.
Aimé Césaire
(1913-2008)
Soleil serpent
Soleil serpent œil
fascinant mon œil
et la mer pouilleuse
d’îles craquant aux doigts des roses
lance-flamme et mon
corps intact de foudroyé
l’eau exhausse les
carcasses de lumière perdues dans le couloir sans pompe
des tourbillons de
glaçons auréolent le cœur fumant des corbeaux
nos cœurs
c’est la voix des
foudres apprivoisées tournant sur leurs gonds de lézarde
transmission d’anolis
au paysage de verres cassés
c’est les fleurs
vampires à la relève des orchidées
élixir du feu central
feu juste feu
manguier de nuit couvert d’abeilles
mon désir un hasard
de tigres surpris aux soufres
mais l’éveil stanneux
se dore des gisements enfantins
et mon corps de galet
mangeant poisson
mangeant colombes et
sommeils
le sucre du mot
Brésil au fond du marécage.
Dans: “Les Armes Miraculeuses” (1946)
O sol e a serpente
(Sanda Iliescu: artista
romena)
Sol serpente
Sol serpente olho
fascinante meu olho
e o mar infestado de
ilhas rendido aos dedos das rosas
lança-chamas e o meu
corpo intocado pelos raios
a água levanta as
carcaças de luz perdidas no estreito sem pompa
em meio a turbilhões
de pingentes de gelo aureolam os corações
fumegantes dos corvos
nossos corações
são a voz dos raios mitigados
volteando sobre seus gonzos de lagarta
transmissão de anolis
(*) à paisagem de vidros partidos
são as flores
vampiras para as orquídeas que hão de vir
elixir do fogo
central
fogo justo fogo
noturno em mangueira repleta de abelhas
meu desejo é um acaso
de tigres surpreendidos nos enxofres
mas o despertar
estanhoso se doura das jazidas infantis
e o meu corpo de
seixo comendo peixe
comendo pombas e a
dormitar
o açúcar da palavra
Brasil no fundo do pântano.
Em: “As Armas Miraculosas” (1946)
Nota:
(*) Anolis é o nome pelo qual se
designa um gênero de pequenos lagartos, muito comuns em terras das três
Américas, geralmente insetívoros, territoriais quando adultos e de hábitos um
tanto arborícolas.
Referência:
CÉSAIRE, Aimé. Soleil serpent. In:
__________. The collected poetry.
Translated, with introduction and notes by Clayton Eshleman and Annette Smith.
A bilingual edition: french x english. Berkeley and Los Angeles, CA: University
of California Press, 1983. p. 104.
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