Em quatro tercetos, Tolentino resume o que se costuma afirmar sobre a
hipotética dicotomia entre corpo e alma, objeto de controvérsia entre muitos
teóricos, como o polímata medieval Avicena (980-1037), para quem somente se
pode falar em perfeição no domínio da alma, pois o corpo – imperfeito por
natureza – está entregue aos mundanos prazeres da carne, numa fogueira ardente
dentro da qual virá a carbonizar.
A ideia deriva da suposição de que é a alma que entrará em contato com
Deus, numa futura prestação de contas do que aqui se fez. Um pouco como na
composição “Corpo”, de Sueli Costa e Abel Silva, de 1982, a antepor os prazeres
físicos do sexo ao caráter mais sublime da alma: “Só quero o teu corpo / quero
te dar o meu / a tua alma guarde / para se entender com Deus”.
J.A.R. – H.C.
Bruno Tolentino
(1940-2007)
Perfeição, Imperfeição
“A perfeição da forma
é para a alma: (1)
à míngua de um
repouso ou de um regaço,
à alma basta uma
consolação.
O corpo é cego e quer
imperfeição,
a asa atônita, as
abelhas de aço,
o amor das coisas
pares como as mãos.
A carne é lenha
condenada e geme
por fogueiras apenas:
só a acalma
o que a carbonizar, que
nada menos
consegue sossegar
essa antialma,
a mão crispada, o
último limão... (2)
Nem mesmo a cicatriz
da perfeição.”
No Café
(Edgar Degas: pintor
francês)
Notas dos Organizadores:
(1) Alusão a uma das ideias principais
da obra O livro da alma, de Avicena
(980-1037), sábio (filósofo, jurista, músico, físico, matemático e astrônomo)
persa, para o qual a alma “é a perfeição primeira [...] de um corpo natural”
(Livro I, I, 10).
(2) Referência ao poema “I limoni” (Os
limões), do livro Ossos de sépia (1925),
do escritor italiano Eugene Montale (1896-1981). Os “limões” acabam por se
tornar o símbolo da poesia de Montale, que se opõe aos “poetas laureados” e
elege as coisas simples e cotidianas como objeto de seu canto.
Referência:
TOLENTINO, Bruno. Perfeição,
imperfeição. In: __________. A balada do
cárcere. 1. ed. comentada. Notas e organização de Juliana P. Perez, Jessé
de Almeida Primo, Martim Vasques da Cunha, Guilherme Malzoni Rabello e Renato
José de Moraes. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2016. p. 112.
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