Como à primeira vista possa parecer, a palavra “Douve”, presente na
última estrofe deste poema de Bonnefoy, não é uma presença feminina, tampouco se
associa inextrincavelmente à ideia de Justiça, haja vista que se repete
prodigamente em grande parte de sua obra “Du mouvement et de l’immobilité de
Douve” (“Sobre o movimento e a imobilidade de Douve”), de 1953, a encetar outras
tantas conexões que, nem de longe, se associam ao exercício da jurisdição.
O mais provável é que se trate de uma abstração relacionada à própria técnica
poética, à natureza de sua inspiração, como num ‘insight’, iluminação,
epifania, ou, até mesmo, ao impacto que a morte acarreta em suas emoções, como
se uma fênix fosse – tudo isso muito a despeito de a palavra “douve” denotar,
enquanto substantivo comum, um fosso preenchido com água à volta de um castelo,
segundo o Dicionário Larousse.
O enfoque de Bonnefoy para o tema da Justiça é uma nítida e legítima
reivindicação dos valores que sobre ela recaem, para que não se torne refém da
falsa retórica, de pretensas quimeras ou de convicções em completa desconexão
perante a realidade: diante dessa fabulosa causa, pleiteia-se a catarse
necessária capaz de restaurar o equilíbrio nas coisas terrenas.
J.A.R. – H.C.
Yves Bonnefoy
(1923-2016)
Justice
Mais toi, mais le
désert! étends plus bas
Tes nappes
ténébreuses.
Insinue dans ce coeur
pour qu’il ne cesse pas
Ton silence comme une
cause làbuleuse.
Viens. Ici
s’interrompt une pensée.
Ici n’a plus de route
un beau pays.
Avance sur le bord de
cette aube glacée
Que te donne en
partage un soleil ennemi.
Et chante. C’est
pleurer deux Ibis ce que tu pleures
Si tu oses chanter
par grand refus.
Souris, et chante. Il
a besoin que tu demeures.
Sombre lumière, sur
les eaux de ce qu’il lut.
Je prendrai dans mes
mains ta face morte.
Je la coucherai dans
son froid. Je ferai de mes mains
sur ton corps
immobile la toilette inutile des morts.
L’orangerie sera ta
résidence.
Sur la table dressée
dans une autre lumière
Tu coucheras ton
cœur.
Ta lace prendra feu,
chassant à travers branches.
Douve sera ton nom au
loin parmi les pierres,
Douve profonde et
noire.
Eau basse
irréductible où l’effort se perdra.
Alegoria da Justiça
(Luca Giordano:
pintor italiano)
Justiça
Mas tu, mas o
deserto! estende e desce
As toalhas
tenebrosas.
Insinua em meu peito
para que não cesse
O teu silêncio como
causa fabulosa.
Vem. Aqui se
interrompe um pensamento.
Aqui um lindo país já
não tem trilha.
Bordeja essa alva
glacial no firmamento
Que te atribui um sol
adverso por partilha.
E canta. É duas vezes
chorar isso que choras
Se tu ousas cantar
por grandes mágoas.
Sorri e canta. Ele
carece agora
Que fiques luz
sombria, do que foi, nas águas.
Eu tomarei nas mãos a
tua face morta. Vou recliná-la
no seu frio. Farei
com minhas mãos em teu imóvel
corpo a toalete
inútil dos mortos.
Será o viveiro a tua
residência.
Por sobre a mesa
posta noutra luz banhada
Porás teu coração.
Tua face arderá,
caçando em meio aos ramos.
Douve será teu nome,
ao longe em meio às pedras,
Douve profunda e
negra.
Água rasa onde o
esforço vão se perderá.
Referência:
BONNEFOY, Yves. Justice / Justiça.
Tradução de Mário Laranjeira. In: __________. Obra poética. Tradução e apresentação de Mário Laranjeira. Prefácio
de Yves Bonnefoy. São Paulo, SP: Iluminuras, 1998. Em francês e em português:
p. 92-94.
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