Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 28 de junho de 2020

Yves Bonnefoy - Justiça

Como à primeira vista possa parecer, a palavra “Douve”, presente na última estrofe deste poema de Bonnefoy, não é uma presença feminina, tampouco se associa inextrincavelmente à ideia de Justiça, haja vista que se repete prodigamente em grande parte de sua obra “Du mouvement et de l’immobilité de Douve” (“Sobre o movimento e a imobilidade de Douve”), de 1953, a encetar outras tantas conexões que, nem de longe, se associam ao exercício da jurisdição.

O mais provável é que se trate de uma abstração relacionada à própria técnica poética, à natureza de sua inspiração, como num ‘insight’, iluminação, epifania, ou, até mesmo, ao impacto que a morte acarreta em suas emoções, como se uma fênix fosse – tudo isso muito a despeito de a palavra “douve” denotar, enquanto substantivo comum, um fosso preenchido com água à volta de um castelo, segundo o Dicionário Larousse.

O enfoque de Bonnefoy para o tema da Justiça é uma nítida e legítima reivindicação dos valores que sobre ela recaem, para que não se torne refém da falsa retórica, de pretensas quimeras ou de convicções em completa desconexão perante a realidade: diante dessa fabulosa causa, pleiteia-se a catarse necessária capaz de restaurar o equilíbrio nas coisas terrenas.

J.A.R. – H.C.

Yves Bonnefoy
(1923-2016)

Justice

Mais toi, mais le désert! étends plus bas
Tes nappes ténébreuses.
Insinue dans ce coeur pour qu’il ne cesse pas
Ton silence comme une cause làbuleuse.

Viens. Ici s’interrompt une pensée.
Ici n’a plus de route un beau pays.
Avance sur le bord de cette aube glacée
Que te donne en partage un soleil ennemi.

Et chante. C’est pleurer deux Ibis ce que tu pleures
Si tu oses chanter par grand refus.
Souris, et chante. Il a besoin que tu demeures.
Sombre lumière, sur les eaux de ce qu’il lut.

Je prendrai dans mes mains ta face morte.
Je la coucherai dans son froid. Je ferai de mes mains
sur ton corps immobile la toilette inutile des morts.

L’orangerie sera ta résidence.
Sur la table dressée dans une autre lumière
Tu coucheras ton cœur.
Ta lace prendra feu, chassant à travers branches.

Douve sera ton nom au loin parmi les pierres,
Douve profonde et noire.
Eau basse irréductible où l’effort se perdra.

Alegoria da Justiça
(Luca Giordano: pintor italiano)

Justiça

Mas tu, mas o deserto! estende e desce
As toalhas tenebrosas.
Insinua em meu peito para que não cesse
O teu silêncio como causa fabulosa.

Vem. Aqui se interrompe um pensamento.
Aqui um lindo país já não tem trilha.
Bordeja essa alva glacial no firmamento
Que te atribui um sol adverso por partilha.

E canta. É duas vezes chorar isso que choras
Se tu ousas cantar por grandes mágoas.
Sorri e canta. Ele carece agora
Que fiques luz sombria, do que foi, nas águas.

Eu tomarei nas mãos a tua face morta. Vou recliná-la
no seu frio. Farei com minhas mãos em teu imóvel
corpo a toalete inútil dos mortos.

Será o viveiro a tua residência.
Por sobre a mesa posta noutra luz banhada
Porás teu coração.
Tua face arderá, caçando em meio aos ramos.

Douve será teu nome, ao longe em meio às pedras,
Douve profunda e negra.
Água rasa onde o esforço vão se perderá.

Referência:

BONNEFOY, Yves. Justice / Justiça. Tradução de Mário Laranjeira. In: __________. Obra poética. Tradução e apresentação de Mário Laranjeira. Prefácio de Yves Bonnefoy. São Paulo, SP: Iluminuras, 1998. Em francês e em português: p. 92-94.

Nenhum comentário:

Postar um comentário