Nas imediações do pico “Dedo de Deus”, em Guapimirim, Rio de Janeiro, o
poeta explora todas as possibilidades da linguagem para pormenorizar tudo o que
está à volta – a planície e a monotonia da vegetação –, num resplendente dia de
sol, sem qualquer nuvem, como se um quadro de Giorgio de Chirico (1888-1978)
fosse, com aquelas cenas de um céu despudoradamente aberto.
O ato de contemplar a paisagem desenrola-se enquanto o autor escreve “sem
alvo sobre o mesmo mar de Camões”: e como o mar, propriamente dito, não está
tão perto do pico – afinal, a distância ao ponto mais próximo do mar alcança
uns 20 quilômetros (a rigor, uns 22 quilômetros ao ponto mais próximo da Baía
de Guanabara) –, estimo que o “mar” em apreço seja metafórico, a saber, o
imenso caudal da Literatura, a quem Camões muito concorreu para o seu Olimpo,
salvando, segundo a lenda, os escritos de “Os Lusíadas”, de se perderem, como a
si próprio, num naufrágio.
J.A.R. – H.C.
Armando Freitas Filho
(n. 1940)
Dedo de Deus
Dia de verão rasgado
passado a ferro
com o punho do
coração
de carne, fechado
batendo no céu da
boca.
Picar e fruir sem
filtro
chupando do outro
corpo
pela sua mufa
todo o calor e o sal
enquanto escrevo sem
alvo
sobre o mesmo mar de
Camões.
Monotonia, pico,
planície.
De Chiricos e
espíritos
recortados ao arrepio
do sol
sem a dúvida de uma
única nuvem.
O vento apura a
montanha
tenta aperfeiçoar o
mar
a onda, a ode, a
estátua
que não se inventa
só com o desejo
de uma pedra cega.
Nada na água para
e na terra que gira:
soluça sem solução
em perpétuo empate
– cara a cara, zero a
zero –
com seus perfis
casuais
de esfinges, climas
que têm o mesmo
instinto
tempo de vida, ânsia
ou substância.
Distantes testemunhas
indiferentes e
oculares
de dois lagos que não
piscam
sem a pedra/sem a luz
sem o ponto final da
lua.
O pico “Dedo de Deus” ao pôr do sol
na Serra dos Órgãos – Rio de Janeiro (RJ)
Referência:
FREITAS FILHO, Armando. Dedo de Deus.
In: FERREIRA DA SILVA, Dora et al. Boa
companhia: poesia. 1. ed., 1. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2005. p. 96-97.
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