Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 21 de junho de 2020

Armando Freitas Filho - Dedo de Deus

Nas imediações do pico “Dedo de Deus”, em Guapimirim, Rio de Janeiro, o poeta explora todas as possibilidades da linguagem para pormenorizar tudo o que está à volta – a planície e a monotonia da vegetação –, num resplendente dia de sol, sem qualquer nuvem, como se um quadro de Giorgio de Chirico (1888-1978) fosse, com aquelas cenas de um céu despudoradamente aberto.

O ato de contemplar a paisagem desenrola-se enquanto o autor escreve “sem alvo sobre o mesmo mar de Camões”: e como o mar, propriamente dito, não está tão perto do pico – afinal, a distância ao ponto mais próximo do mar alcança uns 20 quilômetros (a rigor, uns 22 quilômetros ao ponto mais próximo da Baía de Guanabara) –, estimo que o “mar” em apreço seja metafórico, a saber, o imenso caudal da Literatura, a quem Camões muito concorreu para o seu Olimpo, salvando, segundo a lenda, os escritos de “Os Lusíadas”, de se perderem, como a si próprio, num naufrágio.

J.A.R. – H.C.

Armando Freitas Filho
(n. 1940)

Dedo de Deus

Dia de verão rasgado
passado a ferro
com o punho do coração
de carne, fechado
batendo no céu da boca.
Picar e fruir sem filtro
chupando do outro corpo
pela sua mufa
todo o calor e o sal
enquanto escrevo sem alvo
sobre o mesmo mar de Camões.
Monotonia, pico, planície.
De Chiricos e espíritos
recortados ao arrepio do sol
sem a dúvida de uma única nuvem.

O vento apura a montanha
tenta aperfeiçoar o mar
a onda, a ode, a estátua
que não se inventa
só com o desejo
de uma pedra cega.
Nada na água para
e na terra que gira:
soluça sem solução
em perpétuo empate
– cara a cara, zero a zero –
com seus perfis casuais
de esfinges, climas
que têm o mesmo instinto
tempo de vida, ânsia
ou substância.
Distantes testemunhas
indiferentes e oculares
de dois lagos que não piscam
sem a pedra/sem a luz
sem o ponto final da lua.

O pico “Dedo de Deus” ao pôr do sol
na Serra dos Órgãos – Rio de Janeiro (RJ)

Referência:

FREITAS FILHO, Armando. Dedo de Deus. In: FERREIRA DA SILVA, Dora et al. Boa companhia: poesia. 1. ed., 1. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2005. p. 96-97.

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