Drummond rumina frente ao espelho, num instante em que se põe a fazer a
barba, sobre um “retrato” do que era ele próprio há alguns anos ou décadas e
como naquele instante já se percebia, com uma calva no mesmo lugar onde, em
fotografias tiradas quando garoto, podiam-se ver fartos cabelos cacheados. No
presente momento, outro homem já se instalou à mesa, com toda a sua “matalotagem”.
Trata-se de um outro, um espião, um investigador, melhor seria dizer um
delator, a atirar-lhe no rosto as marcas da passagem do tempo, os vincos que
conformam um estado de flagelação perante uma existência que chegara à marca
dos sessenta anos. E Carlos agora faz-se irmão de “José”: “e tudo acabou / e
tudo fugiu / e tudo mofou, / e agora, José?”.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
O Retrato Malsim
O inimigo maduro a
cada manhã se vai formando
no espelho de onde
deserta a mocidade.
Onde estava ele,
talvez escondido em castelos escoceses,
em cacheados cabelos
de primeira comunhão?
Onde, que lentamente
grava sua presença
por cima de outra,
hoje desintegrada?
Ah, sim: estava na rigidez
das horas de tenência orgulhosa,
no morrer em
pensamento quando a vida queria viver.
Estava primo do
outro, dentro,
era o outro, que não
se sabia liquidado,
verdugo expectante,
convidando a sofrer;
cruz de carvão, ainda
sem braços.
Afinal irrompe dono
completo.
Instalou-se, a mesa é
sua,
cada vinco e reflexão
madura ele é quem porta,
e esparrama na toalha
sua matalotagem:
todas as flagelações,
o riso mau,
o desejo de terra
destinada
e o estar-ausente em
qualquer terra.
3 em 1, 1 em 3:
ironia passionaridade
morbidez.
No espelho ele se faz
a barba amarga.
Em: “Lição das Coisas” (1962)
Homem frente ao espelho
(Suzanne M. Leclair:
pintora norte-americana)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond. O retrato
malsim. In: __________. Poesia completa:
em dois volumes. V. 1. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2001. p.
488. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série Brasileira)
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