Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Ivan Junqueira - Sótão

Para recuperar a memória dos fatos, sobretudo os mais agradáveis, costumamos acumular muitas coisas no sótão ou naquele famoso “quartinho”, verdadeiro repositório não só desses objetos passíveis de avivar as recordações, como também de outras tantas peças, cuja integridade restou prejudicada e para as quais – um dia, quem sabe? – esperamos retornar, para efetuar o conserto.

Mas o mais contundente, certamente, são as lembranças a que recorremos diretamente em nossas mentes, algumas das quais gostaríamos que fossem apagadas, peremptoriamente, do sótão de nossa memória, já que infelizes ou sombrias, muitas delas com o poder de nos assustar em sonhos, a revolver o inconsciente impactado por circunstâncias não muito bem resolvidas.

J.A.R. – H.C.

Ivan Junqueira
(1934-2014)

Sótão

De tudo ficou um pouco.
(Carlos Drummond de Andrade)

De tudo há um pouco no sótão:
bonecas, fórmulas, fotos,
certidões, velhas apólices,
vapores, dracmas, sarcófagos,
indecifráveis hieróglifos,
frascos de ópio, trechos de ópera,
camafeus fantasmagóricos,
miasmas, atestados de óbito...

Do pai, o pôquer e a aposta;
da mãe, o esplendor estoico;
de uma irmã, o infausto pólipo;
da outra, a loucura e a cólera.
E dos demais, os que sobram,
a sombra exígua e disforme
que se enrosca aos tíbios ossos
de uma árvore genealógica.

De tudo há um pouco: que importa
seja um triste e estrito espólio
ou, pior, o dobre monótono
de algum arcaico relógio?
Quem sabe a mão que, por sóbria,
não ousou bater à porta?
Ou essa boca impiedosa
que jamais se abriu a um ósculo?

De tudo há um pouco no sótão,
mas nada o que ali se possa
comparar à imagem órfã
de quem de si se fez hóspede
e exilou-se em sua órbita.
Nela, mesmo que se lhe olhe,
não se vê senão o invólucro
de um sopro que se evapora.

Em: “A Sagração dos Ossos” (1989-1994)

Jo March escrevendo no sótão
(Norman Rockwell: pintor norte-americano)

Referência:

JUNQUEIRA, Ivan. Sótão. In: __________. Poemas reunidos. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1999. p. 237-238.

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