Para recuperar a memória dos fatos, sobretudo os mais agradáveis, costumamos
acumular muitas coisas no sótão ou naquele famoso “quartinho”, verdadeiro
repositório não só desses objetos passíveis de avivar as recordações, como também
de outras tantas peças, cuja integridade restou prejudicada e para as quais – um
dia, quem sabe? – esperamos retornar, para efetuar o conserto.
Mas o mais contundente, certamente, são as lembranças a que recorremos
diretamente em nossas mentes, algumas das quais gostaríamos que fossem apagadas,
peremptoriamente, do sótão de nossa memória, já que infelizes ou sombrias,
muitas delas com o poder de nos assustar em sonhos, a revolver o inconsciente impactado
por circunstâncias não muito bem resolvidas.
J.A.R. – H.C.
Ivan Junqueira
(1934-2014)
Sótão
De tudo ficou um pouco.
(Carlos Drummond de Andrade)
De tudo há um pouco
no sótão:
bonecas, fórmulas,
fotos,
certidões, velhas
apólices,
vapores, dracmas,
sarcófagos,
indecifráveis
hieróglifos,
frascos de ópio,
trechos de ópera,
camafeus
fantasmagóricos,
miasmas, atestados de
óbito...
Do pai, o pôquer e a
aposta;
da mãe, o esplendor
estoico;
de uma irmã, o
infausto pólipo;
da outra, a loucura e
a cólera.
E dos demais, os que
sobram,
a sombra exígua e
disforme
que se enrosca aos
tíbios ossos
de uma árvore
genealógica.
De tudo há um pouco:
que importa
seja um triste e
estrito espólio
ou, pior, o dobre
monótono
de algum arcaico
relógio?
Quem sabe a mão que,
por sóbria,
não ousou bater à
porta?
Ou essa boca
impiedosa
que jamais se abriu a
um ósculo?
De tudo há um pouco
no sótão,
mas nada o que ali se
possa
comparar à imagem órfã
de quem de si se fez
hóspede
e exilou-se em sua
órbita.
Nela, mesmo que se
lhe olhe,
não se vê senão o
invólucro
de um sopro que se
evapora.
Em: “A Sagração dos Ossos” (1989-1994)
Jo March escrevendo no sótão
(Norman Rockwell:
pintor norte-americano)
Referência:
JUNQUEIRA, Ivan. Sótão. In: __________.
Poemas reunidos. Rio de Janeiro, RJ:
Record, 1999. p. 237-238.
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