Relembrando os passamentos de seus familiares mais chegados – irmã, mãe
e pai, nessa ordem –, Adélia afirma que depois disso jamais se consolou,
apelando para a memória, sua e de conhecidos, sobre os fatos capazes de avivar atributos
de seu genitor, de quem a lembrança do último sono resultou em palavras muito
assemelhadas à aceitação da própria morte.
Revela-se um estado de adolescência de Adélia, pelo menos até o instante
do falecimento de sua mãe, pois a autora se reporta a seus seios, ainda não
plenamente desenvolvidos, afora o fato de que ao afirmar ter ficado nua naquele
momento, s.m.j., tem menos um suporte denotativo que conotativo, a revelar o
quanto a então adolescente sentiu o solo desaparecer sob os
seus pés.
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1934)
Quando minha irmã
morreu eu chorei muito
e me consolei
depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal
onde eu ia existir.
Quando minha mãe
morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação
recém-achada:
meus seios
conformavam dois montículos
e eu fiquei muito
nua.
Cruzando os braços
sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu,
nunca mais me consolei.
Busquei retratos
antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me
lembrassem sua fala,
seu modo de apertar
os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido
do seu corpo
em seu último sono e
repeti as palavras
que ele disse quando
toquei seus pés:
‘Deixa, tá bom assim’.
Quem me consolará
desta lembrança?
Meus seios se
cumpriram
e as moitas onde
existo
são pura sarça
ardente de memória.
Em: “Bagagem” (1976)
A morte de Desdêmona
(Eugène Delacroix:
pintor francês)
Referência:
PRADO, Adélia. As mortes sucessivas. In:
__________. Poesia reunida. 3. ed.
São Paulo, SP: Siciliano, 1991. p. 131.
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