A idade madura é a dos momentos de desilusão completa sobre aquilo que
não fomos capazes de mudar no mundo. É, também, o instante em que se descobre “na
pele certos sinais que aos vinte anos não [se] via”, isto é, a mais devastadora
consciência de que, façamos o que façamos, a finitude da experiência humana é
um condição para a qual não somos capazes de oferecer contorno.
Por isso quando deparamos com ela costumamos relembrar os momentos de
infância, como se estivéssemos recorrendo à memória para nos conceber novamente
jovens, com todo um plano de vida pela frente. Há, do mesmo modo, aqueles que
se reconciliam, nessa idade, com os bens que angariaram, com o amor que deram e
receberam, com tudo o que viram e experimentaram: esses são, a meu ver, os que
podem se dizer felizes.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Idade Madura
As lições da infância
desaprendidas na
idade madura.
Já não quero palavras,
nem delas careço.
Tenho todos os
elementos
ao alcance do braço.
Todas as frutas
e consentimentos.
Nenhum desejo débil.
Nem mesmo sinto falta
do que me completa e
é quase sempre melancólico.
Estou solto no mundo
largo.
Lúcido cavalo
com substância de
anjo
circula através de
mim.
Sou varado pela
noite, atravesso os lagos frios,
absorvo epopeia e
carne,
bebo tudo,
desfaço tudo,
torno a criar, a
esquecer-me:
Durmo agora, recomeço
ontem.
De longe, vieram
chamar-me.
Havia fogo na mata.
Nada pude fazer,
nem tinha vontade.
Toda a água que
possuía
irrigava jardins
particulares
de atletas retirados,
freiras surdas, funcionários demitidos.
Nisso vieram os
pássaros,
rubros, sufocados,
sem canto,
e pousaram a esmo.
Todos se
transformaram em pedra.
Já não sinto piedade.
Antes de mim outros
poetas,
depois de mim outros
e outros
estão cantando a
morte e a prisão.
Moças fatigadas se
entregam, soldados se matam
no centro da cidade
vencida.
Resisto e penso
numa terra enfim
despojada de plantas inúteis,
num país extraordinário,
nu e terno,
qualquer coisa de
melodioso,
não obstante mudo,
além dos desertos
onde passam tropas, dos morros
onde alguém colocou
bandeiras com enigmas,
e resolvo
embriagar-me.
Já não dirão que
estou resignado
e perdi os melhores
dias.
Dentro de mim, bem no
fundo,
Há reservas colossais
de tempo,
futuro, pós-futuro,
pretérito,
há domingos, regatas,
procissões,
há mitos proletários,
condutos subterrâneos,
janelas em febre,
massas da água salgada, meditação e sarcasmo.
Ninguém me fará
calar, gritarei sempre
que se abafe um
prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz
baixa com os conspiradores,
transmitirei recados
que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o
palhaço,
serei, médico, faca
de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco,
loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais
ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação
feérica,
viva em mim qual um
inseto.
Idade madura em olhos,
receitas e pés, ela me invade
com sua maré de
ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou
querer os institutos, as lendas,
descobri na pele
certos sinais que aos vinte anos não via.
Eles dizem o caminho,
embora também se
acovardem
em face a tanta claridade
roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez
menos solitário,
em ruas extremamente
dispersas,
transito no canto do
homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta
riqueza, jogo-a toda por um número de casa,
e ganho.
Em: “A Rosa do Povo” (1945)
Maturidade
(Trinh Tuan: artista
vietnamita)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Idade
madura. In: __________. A roda do povo /
Claro enigma. Rio de Janeiro, RJ: BestBolso, 2010. (Seleção Saraiva
vira-vira: 2 livros em 1; n. 1)
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