Belo satisfaz-se em elucubrações à volta do pôr do sol, quer no domínio
do tempo – o momento presente em cotejo com o que já se passou –, quer na
província do espaço – em Espinho ou ao sul de Florença –, quer ainda nas
evocações de nomes referenciais em alguns países – Leibniz, os Medicis, Antero.
A “Literatura Explicativa”, assim, teria os seus métodos centrados no
cotejo das obras de hoje com as de ontem, as daqui com as dali, sendo pontuada,
ademais, pelos grandes tomos que marcaram a história das letras – os trabalhos denominados
“clássicos” –, marcos inolvidáveis do que de melhor produziu o espírito humano.
J.A.R. – H.C.
Ruy Belo
(1933-1978)
Literatura Explicativa
O pôr do sol em
Espinho não é o pôr do sol
nem mesmo o pôr do sol
é bem o pôr do sol
É não morrermos mais
é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós
mesmos anos antes
é lermos Leibniz
conviver com os Medicis
onze quilômetros ao
sul de Florença
sobre restos de
inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se
põe o sol em Espinho?
Terão visto este sol
os liberais no mar
ou Antero de junto da
ermida?
O sol que aqui se põe
onde nasce? A quem
passamos este sol?
Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr do sol em
Espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o
braço esquerdo
Ou melhor: é não
haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas
nas vidraças
oliveiras à chuva
homens a trabalhar
coisas todas as
coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de
vozes solidão dos vidros
não mais os homens
coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr do sol
apenas pôr do sol
Em: “Homem de Palavra(s)” (1970)
Vista de Florença a partir do San Miniato
(Thomas Cole: pintor
angloamericano)
Referência:
BELO, Ruy. Literatura explicativa. In:
MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, E. M. de (Orgs.). Antologia da novíssima poesia portuguesa. 3. ed. 2. vol. Lisboa,
PT: Moraes Editores, 1971. p. 677-678. (‘Círculo de Poesia’; v. 46)
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