Há bastante desolação na voz poética que enuncia este poema, vale dizer,
de um “funcionário cansado” que, provavelmente, trabalha na área contábil de
uma firma qualquer, haja vista a menção do poeta às partidas dobradas em
débitos e créditos sobre algum presumível livro de escrituração.
No retorno a casa, fica ele confrangido entre as paredes de seu quarto,
espécie de prisão, remoendo as palavras cruzadas de seu sonho, exaurido em suas
forças, sem qualquer sentido de honradez ou orgulho em relação ao trabalho que
executa: um autêntico Carlitos sendo triturado pelas engrenagens da máquina
capitalista.
J.A.R. – H.C.
António Ramos Rosa
(1924-2013)
Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os
sonhos e as mãos
dispersou-me os
amigos
tenho o coração
confundido e a rua é estreita
estreita em cada
passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só
num quarto só
com os sonhos
trocados
com toda a vida às
avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não
acompanha a minha mão
Débito e Crédito
Débito e Crédito
a minha alma não
dança com os números
tento escondê-la
envergonhado
o chefe apanhou-me
com o olho lírico na gaiola do quintal
em frente
e debitou-me na minha
conta de empregado
Sou um funcionário
cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto
orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto
irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas
palavras generosas
Flor rapariga amigo
menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras
cruzadas do meu sonho
palavras soterradas
na prisão da minha vida
isto todas as noites
do mundo uma noite só comprida
num quarto só
Em: “O Grito Claro” (1958)
Farley deita abaixo
(Jasper Johns: pintor
norte-americano)
Referência:
ROSA, António Ramos. Poema dum
funcionário cansado. In: __________. O poeta na rua. Selecção e prefácio de Ana
Paula Coutinho Mendes. 2. ed. Vila Nova de Famalicão, PT: Quasi Edições, 2005.
p. 22-23.
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