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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

António Ramos Rosa - Poema dum Funcionário Cansado

Há bastante desolação na voz poética que enuncia este poema, vale dizer, de um “funcionário cansado” que, provavelmente, trabalha na área contábil de uma firma qualquer, haja vista a menção do poeta às partidas dobradas em débitos e créditos sobre algum presumível livro de escrituração.

No retorno a casa, fica ele confrangido entre as paredes de seu quarto, espécie de prisão, remoendo as palavras cruzadas de seu sonho, exaurido em suas forças, sem qualquer sentido de honradez ou orgulho em relação ao trabalho que executa: um autêntico Carlitos sendo triturado pelas engrenagens da máquina capitalista.

J.A.R. – H.C.

António Ramos Rosa
(1924-2013)

Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal
em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

Em: “O Grito Claro” (1958)

Farley deita abaixo
(Jasper Johns: pintor norte-americano)

Referência:

ROSA, António Ramos. Poema dum funcionário cansado. In: __________.  O poeta na rua. Selecção e prefácio de Ana Paula Coutinho Mendes. 2. ed. Vila Nova de Famalicão, PT: Quasi Edições, 2005. p. 22-23.

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