Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Valery Larbaud - Alma Perdida

Vivendo em plena liberdade, num universo dominado pela contingência, uma alma que se diz perdida evade-se na insuficiência existencial, porque, apesar de ser capaz de ‘insights’ geniais, esmorece na inércia, na vida contemplativa e no fastio da alimentação exuberante, deixando-se levar pelo “ramerrão quotidiano”.

Sabem-se lá por quais razões mentais o poema evocou-me a figura de Oblómov, personagem principal da obra de mesmo nome, do escritor russo Ivan Goncharóv: Oblómov é tão apático que sequer é capaz de se levantar do sofá para providenciar qualquer coisa, deixando ao largo a missão de levar a bom termo a administração de suas propriedades. Uma alma perdida!

J.A.R. – H.C.

Valery Larbaud
(1881-1957)

Alma Perdida

A vous, aspirations vagues; enthousiasmes;
Pensers d'après déjeuner; élans du cœur;
Attendrissement qui suit la satisfaction
Des besoins naturels; éclairs du génie; agitation
De la digestion qui se fait; apaisement
De la digestion bien faite; joies sans causes;
Troubles de la circulation du sang; souvenirs d’amour;
Parfum de benjoin du tub matinal; rêves d’amour;
Mon énorme plaisanterie castillane, mon immense
Tristesse puritaine, mes goûts spéciaux:
Chocolat, bonbons sucrés jusqu’à brûler, boissons glacées;
Cigares engourdisseurs; vous, endormeuses cigarettes;
Joies de la vitesse; douceur d’être assis; bonté
Du sommeil dans l’obscurité complète;
Grande poésie des choses banales: faits divers; voyages;
Tziganes; promenades en traîneau; pluie sur la mer;
Folie de la nuit fiévreuse, seul avec quelques livres;
Hauts et bas du temps et du tempérament;
Instants reparus d’une autre vie; souvenirs, prophéties
O splendeurs de la vie commune et du train-train ordinaire,
A vous cette âme perdue.

Alma Perdida
(Kathy M. Stanion: artista norte-americana)

Alma Perdida

A vós, aspirações vagas; entusiasmos;
cismas depois do almoço; impulsos do coração;
enternecimento que vem com a satisfação
das necessidades naturais; clarões de gênio; apaziguamento
da digestão bem feita; alegrias sem causa;
distúrbios da circulação do sangue; recordações de amor;
perfume de benjoim do banho matinal; sonhos de amor;
minha enorme molecagem castelhana, minha imensa
tristeza puritana, meus gostos especiais;
chocolate, bombons, doces de derreter, bebidas geladas;
charutos entorpecentes e vós, acalentadores cigarros;
alegrias da velocidade; doçura de ficar sentado; delícia
do sono na completa escuridão;
grande poesia das coisas; noticiário de polícia; viagens;
tziganos; passeios de trenó; chuva no mar;
loucura da noite febril, sozinho com alguns livros;
oscilações do temperamento e do tempo;
instantes de outra vida, reaparecidos; recordações, profecias;
ó esplendor da vida comum e do ramerrão quotidiano,
a vós esta alma perdida.

Referência:

LARBAUD, Valery. Alma perdida / Alma Perdida. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Traduzida. Edição bilíngue. Organização e notas de Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP: 7Letras; Cosac Naify, 2011. Em francês: p. 210; em português: p. 211. (Coleção ‘Ás de Colete’; n. 20)

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