Vivendo em plena liberdade, num universo dominado pela contingência, uma
alma que se diz perdida evade-se na insuficiência existencial, porque, apesar
de ser capaz de ‘insights’ geniais, esmorece na inércia, na vida contemplativa
e no fastio da alimentação exuberante, deixando-se levar pelo “ramerrão
quotidiano”.
Sabem-se lá por quais razões mentais o poema evocou-me a figura de Oblómov,
personagem principal da obra de mesmo nome, do escritor russo Ivan Goncharóv:
Oblómov é tão apático que sequer é capaz de se levantar do sofá para providenciar
qualquer coisa, deixando ao largo a missão de levar a bom termo a administração
de suas propriedades. Uma alma perdida!
J.A.R. – H.C.
Valery Larbaud
(1881-1957)
Alma Perdida
A vous, aspirations
vagues; enthousiasmes;
Pensers d'après
déjeuner; élans du cœur;
Attendrissement qui
suit la satisfaction
Des besoins naturels;
éclairs du génie; agitation
De la digestion qui
se fait; apaisement
De la digestion bien
faite; joies sans causes;
Troubles de la
circulation du sang; souvenirs d’amour;
Parfum de benjoin du
tub matinal; rêves d’amour;
Mon énorme
plaisanterie castillane, mon immense
Tristesse puritaine,
mes goûts spéciaux:
Chocolat, bonbons
sucrés jusqu’à brûler, boissons glacées;
Cigares
engourdisseurs; vous, endormeuses cigarettes;
Joies de la vitesse; douceur
d’être assis; bonté
Du sommeil dans l’obscurité
complète;
Grande poésie des
choses banales: faits divers; voyages;
Tziganes; promenades
en traîneau; pluie sur la mer;
Folie de la nuit
fiévreuse, seul avec quelques livres;
Hauts et bas du temps
et du tempérament;
Instants reparus d’une
autre vie; souvenirs, prophéties
O splendeurs de la
vie commune et du train-train ordinaire,
A vous cette âme
perdue.
Alma Perdida
(Kathy M. Stanion:
artista norte-americana)
Alma Perdida
A vós, aspirações
vagas; entusiasmos;
cismas depois do
almoço; impulsos do coração;
enternecimento que
vem com a satisfação
das necessidades
naturais; clarões de gênio; apaziguamento
da digestão bem
feita; alegrias sem causa;
distúrbios da
circulação do sangue; recordações de amor;
perfume de benjoim do
banho matinal; sonhos de amor;
minha enorme
molecagem castelhana, minha imensa
tristeza puritana,
meus gostos especiais;
chocolate, bombons,
doces de derreter, bebidas geladas;
charutos
entorpecentes e vós, acalentadores cigarros;
alegrias da
velocidade; doçura de ficar sentado; delícia
do sono na completa
escuridão;
grande poesia das
coisas; noticiário de polícia; viagens;
tziganos; passeios de
trenó; chuva no mar;
loucura da noite febril,
sozinho com alguns livros;
oscilações do
temperamento e do tempo;
instantes de outra
vida, reaparecidos; recordações, profecias;
ó esplendor da vida
comum e do ramerrão quotidiano,
a vós esta alma
perdida.
Referência:
LARBAUD, Valery. Alma perdida / Alma
Perdida. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Traduzida. Edição bilíngue.
Organização e notas de Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP:
7Letras; Cosac Naify, 2011. Em francês: p. 210; em português: p. 211. (Coleção
‘Ás de Colete’; n. 20)
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