Caetano é um letrista versado – e dos maiores – da Música Popular
Brasileira. E também poeta, “por que não?”: quem colocaria em dúvida o esmero
dos versos de “Quereres” ou, ainda, de “Língua” – um tributo ao idioma
português, lapidado e recriado por Pessoa e Rosa, ou por outra via, a língua
que o vate maior, Camões, fez rebrilhar nas oitavas de “Os Lusíadas”.
Neste poema, vai ele ao encontro dos livros, fazendo lembrar aquela
máxima do também poeta, seu conterrâneo, Castro Alves: “Bendito aquele que
semeia livros, livros à mancheia, e manda o povo pensar”. Pois os livros são
como a radiação de um corpo negro, expansiva até os limites do universo – se é
que os há: “Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (e, sem dúvida,
sobretudo o verso) é o que pode lançar mundos no mundo”. E temos aí um giro
completo, retornando a Camões!
Caetano também não se afasta de seu dileto ramo – a música –, pois há
claras conexões de alguns dos versos do poema, como o primeiro da primeira
estrofe e o derradeiro da segunda, à letra da canção “Chão de Estrelas”, de
Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, que, aliás, mereceu interpretação de sua irmã
Maria Bethânia, como se pode ratificar no vídeo abaixo.
J.A.R. – H.C.
Caetano Veloso
(n. 1942)
Livros
Tropeçavas nos astros
desastrada
Quase não tínhamos
livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em
nossa vida entraram
São como a radiação
de um corpo negro
Apontando pra
expansão do Universo
Porque a frase, o
conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida,
sobretudo o verso)
É o que pode lançar
mundos no mundo.
Tropeçavas nos astros
desastrada
Sem saber que a
ventura e a desventura
Dessa estrada que vai
do nada ao nada
São livros e o luar
contra a cultura.
Os livros são objetos
transcendentes
Mas podemos amá-los
do amor táctil
Que votamos aos maços
de cigarro
Domá-los, cultivá-los
em aquários
Em estantes, gaiolas,
em fogueiras
Ou lançá-los pra fora
das janelas
(Talvez isso nos
livre de lançarmo-nos)
Ou – o que é muito
pior – por odiarmo-los
Podemos simplesmente
escrever um:
Encher de vãs
palavras muitas páginas
E de mais confusão as
prateleiras.
Tropeçavas nos astros
desastrada
Mas pra mim foste a
estrela entre as estrelas.
(Do CD ‘Livro’, de 1997)
Natureza-Morta com Livros Antigos e Vela
(Igor Mościcki: pintor polonês)
Referência:
VELOSO, Caetano. Livro. In: PINTO,
Manuel da Costa (Seleção e organização). Antologia
comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha,
2006. p. 361-362.
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