É com o alimento provido pelo poeta que as palavras, como bezerros
novos, ganham força para avançar até onde terceiros, contemplando-as,
atribuem-lhes sentidos que vão muito além do suporte inocente do vernáculo, ou
por outros modos, o sistema nelas enxerga, enquanto rede sinistra concatenada
nos porões, um poder capaz de armar e desarmar explosões.
O poeta, por óbvio, é um pai adotivo das palavras, haja vista que elas
lhe precedem em muito no domínio temporal – e enquanto pai adotivo cumpre-lhe
associá-las em um todo comunal, no qual o condimento poético é a liga capaz de
mantê-las perenemente na memória dos leitores de todas as épocas.
J.A.R. – H.C.
Carlos Nejar
(n. 1939)
O Poeta
Sob a enxovia de
canários, o poeta alimenta as
palavras como
bezerros novos. É tão mortalmente
pobre para si e
visionário aos outros.
As palavras sabem de
onde vieram e ele desconhece
as tempestades de
areia sobre o berço.
As palavras soletram
o alfabeto, mas o alfabeto
é uma rede sinistra
no porão, carnívora, onde o
Sistema arma, desarma
as explosões.
O poeta é pai das
palavras e todas elas são
inocentes.
Em: “Memórias do Porão” (1985)
Bela Obsessão
(Alexei Butirskiy:
pintor russo)
Referência:
NEJAR, Carlos. O poeta. In: __________.
Antologia poética de Carlos Nejar.
Prefácio, organização e selecção de António Osório. 1. ed. Cascais, PT:
Pergaminho, 2003. p. 132. (‘Poesia Fértil: lembrando Paul Eluard’; nº 4)
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