Há certos mistérios
na criação poética que desafiam os mais perspicazes teóricos da matéria: o
poema não necessita de tantas referências entrecruzadas ou jogos de palavras a
simular verdadeiros ‘puzzles’, para que desperte no leitor aquela sensação de
ressonância perceptiva que, de todo modo, nem se poderá afirmar
peremptoriamente que existiu assim como a concebeu o poeta.
Constata-se no poema
de Andresen a clara intenção de refletir ao olhar de quem o lê uma gama de
cores que se distribui pelos espaços componentes dos cenários à volta das
varandas em epígrafe: azul, verde-escuro, branco, roxo azul, furta-cor.
Mas o que remanesce,
ao final do poema, é exatamente a sensação que se pretende transmitir: a autora
nos conta, recostada na varanda de hoje, como os seus poemas emergem e se
alinham nas páginas do caderno, repletos de vestígios de uma época de ouro,
fruída na varanda de ontem, que foi eternidade enquanto perdurou-lhe a
juventude.
J.A.R. – H.C.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
Varandas
É na varanda que os
poemas emergem
Quando se azula o rio
e brilha
O verde-escuro do
cipreste – quando
Sobre as águas se
recorta a branca escultura
Quase oriental e
quase marinha
Da torre aérea e
branca
E a manhã toda aberta
Se torna irisada e
divina
E sobre a página do
caderno o poema se alinha
Noutra varanda assim
num setembro de outrora
Que em mil estátuas e
roxo azul se prolongava
Amei a vida como
coisa sagrada
E a juventude me foi
eternidade
Em: “O Búzio de Cós”
(1997)
Jovem senhora numa varanda
(Gerrit Dou: pintor holandês)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de
Mello Breyner. Varandas. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei
(Organização e Introdução). Antologia da poesia portuguesa
contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro, RJ: Lacerda Editores,
1999. p. 85.
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