Com aquela verve que lhe é característica –
amalgamando o sagrado e o profano –, a poetisa mineira propugna pela morte,
seguida de outra vida, sem que tenha de estar, novamente, intimidada pelo medo
de vir a se extinguir: tal seria o reino do céu, no qual se experimentaria, em
revival, tudo o que, nesta vida, sedimentou-se em seu espírito.
Transparece, no texto do poema, aquele matiz
sensualíssimo, a refletir o fascínio da poetisa com as particularidades mais
viris de seu companheiro: cheiro que se impregna na camisa no portal, a limpeza
da unha por meio de canivete, o hábito de passar um dia sem tomar banho e por
aí vai...
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1934)
O reino do céu
Depois da morte
eu quero tudo o que seu vácuo abrupto
fixou na minha alma.
Quero os contornos
desta matéria imóvel de lembrança,
desencantados deste espaço rígido.
Como antes, o jeito próprio
de puxar a camisa pela manga
e limpar o nariz.
A camisa engrossada de limalha de ferro mais
o suor, os dois cheiros impregnados,
a camisa personalíssima atrás da porta.
Eu quero depois, quando viver de novo,
a ressurreição e a vida escamoteando
o tempo dividido, eu quero o tempo inteiro.
Sem acabar nunca mais, a mão socando o joelho,
a unha a canivete – a coisa mais viril que eu
conheci.
Eu vou querer o prato e a fome,
um dia sem tomar banho,
a gravata pro domingo de manhã,
a homilia repetida antes do almoço:
‘conforme diz o Evangelho, meus filhos, se
tivermos fé, a montanha mudará de lugar’.
Quando eu ressuscitar, o que quero é
a vida repetida sem o perigo da morte,
os riscos todos, a garantia:
a noite estaremos juntos, a camisa no portal.
Descansaremos porque a sirene apita
e temos que trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus,
para ganhar o céu.
A Sala do Céu
Burghley House
Stamford – Lincolnshire
– Inglaterra
(Antonio Verrio: pintor
italiano)
Referência:
PRADO, Adélia. O reino do céu. In:
__________. Poesia reunida. 3. ed. São Paulo, SP: Siciliano, 1991.
p. 124.
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