Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 24 de julho de 2018

Raul de Leoni - Florença ‎

O poeta petropolitano tece loas à urbe italiana, segundo ele, a mais humana das cidades vivas e, ao mesmo tempo, a mais divina das cidades mortas, ela que foi um dos principais centros artísticos e culturais da Velha Bota no período do Renascimento, sendo considerada por muitos como o berço de onde o movimento eclodiu.

 

O poema navega pelos grandes nomes das artes visuais, da literatura e da filosofia do humanismo – durante esse resgate e redescoberta dos valores clássicos – e, lá pelos interstícios de suas estrofes, emprega o epíteto “Pátria Sereníssima” que, pelo que sabemos, estava associado ao nome de outra cidade italiana de semelhante relevo àquela época: Veneza. Por sinal, eis um mote para outra postagem que pretendemos fazer daqui a alguns dias, em versos da pena de ninguém menos que Lord Byron.

 

J.A.R. – H.C.

 

Raul de Leoni

(1895-1926)

 

Florença

 

Manhã de outono...

Través a gaze fluida da neblina,

Teu panorama, trêmulo, hesitante,

Se vai furtivamente desenhando,

Na alva doçura de uma renda fina...

 

Do florido balcão de San Miniato,

Como num cosmorama imaginário,

Vejo aos poucos despir-se o teu cenário,

Dentro de um sereníssimo aparato...

Em tons de madrepérola cambiante,

Ao reflexo de um íris fugidio,

Sob o ar transparente e o céu macio,

Abre-se em luz a concha colorida

Do vale do Arno...

 

Longe onde a névoa azul se dilui sobre as linhas

Amáveis das colinas,

Em caprichosas curvas serpentinas

De oliveiras em flor, de olmeiros e de vinhas,

 

De pinheiros reais e amendoeiras tranquilas,

Fiesole, bucólica e galante,

Mostra, numa expressão fresca de tintas,

O esmalte senhorial das suas vilas

E o cromo pastoril das suas quintas,

Dentro dos bosques do Decameron...

 

Surgem zimbórios em mosaico, perfis duros

De arrogantes palácios gibelinos,

Silhuetas de basílicas votivas,

Torres mortas e suaves perspectivas

E o coleio longínquo dos teus muros,

Recortando a moldura azul dos Apeninos...

 

Teus sinos cantam num prelúdio lento

A elegia das horas imortais;

É a canção do teu próprio sentimento

Na voz sonâmbula das catedrais...

 

E é, então, que transponho as tuas portas

E ouvindo as tuas ruínas pensativas

Sinto-me em corpo e espírito em Florença:

A mais humana das cidades vivas,

A mais divina das cidades mortas!...

 

Florença, ó meu retiro espiritual!

Suave vinheta do meu pensamento!

Sempre te amei com o mesmo afeto humano

Dês que tu eras a comuna guelfa

Idealista, rebelde e sanguinária,

Até o dia

Em que tua alma, flor litúrgica e sombria

Do espírito cristão,

Fugindo do “Jardim das Escrituras”,

Foi, para ver a luz de outras alturas,

Sentar-se no “Banquete de Platão”!

 

Nobre e amável Florença!

Doce filha de Cristo e de Epicuro!

Flor de Volúpia e de Sabedoria!

Na tua alma de Vênus e Maria

Há uma estranha harmonia ambígua, indescritível:

A castidade melancólica dos lírios

E a graça afrodisíaca das rosas;

A mansuetude ingênua de Fra Angélico!

E a alegria picante de Bocácio!

 

Amo-te assim, indefinida e vária!

Casta e viciosa – gótica e pagã,

Harmoniosa entre a Acrópole e o Calvário.

 

Ó Pátria sereníssima

Das formas puras, das ideias claras;

Das igrejas, das fontes, dos jardins;

Dos mosaicos, das rendas, dos brocados;

Dos coloristas límpidos e meigos;

Das almas furta-cor e da graça perversa;

Da discreta estesia dos requintes;

Dos vícios raros, das perversões elegantes;

Dos venenos sutis e dos punhais lascivos;

Deliciosa no crime e na virtude,

Onde a existência foi uma bela atitude

De sensibilidade e de bom gosto

E passou pela História, assim, na ronda viva

Meditativa e brilhante

De uma “Fête Galante”!...

 

Trago-te a minha gratidão latina

Porque foi no teu seio que se fez

Toda a ressurreição da Vida luminosa:

Ó Florença! Florença!

A mais humana das cidades vivas!

A mais divina das cidades mortas!...

 

Florença

(Thomas Cole: pintor anglo-americano)

 

Referência:

 

LEONI, Raul. Florença. In: __________. Luz mediterrânea. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos Livreiro-Editor, 1922. p. 15-19.

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