Eis um poema capaz de
deixar o leitor aturdido frente ao vocabulário empregado pelo autor, que vai
desde as referências a obras-primas, até micróbios, campo de manobras, sufrágio
universal, reprodução de rostos em cópias – seriam, no caso, os rebentos?!... –
afora o título inusitado, a sugerir que houve algum defeito ou vício oculto não
ostentado no período pré-matrimonial e que, agora, resolveu aflorar.
É o recurso imediato
às formas iconoclastas do poder criativo, em fuga dos modelos convencionais de
exteriorização das emoções, e se algo do ambiente interno merece alguma
atenção, é de lá que surge a lava de substâncias inconscientes, como num quadro
surrealista, ou, ainda, o galope vertiginoso de micro-organismos que ameaçam a
integridade física do poeta.
J.A.R. – H.C.
Jules Laforgue
(1860-1887)
Cas Rédhibitoire (Mariage)
Ah! mon ame a sept facultés!
Plus autant qui’il de chefs-d’oeuvre,
Plus mille microbes ratés
Qui m’ont pris pour champ de manoeuvre.
Oh ! le suffrage universel
Qui se bouscule et se chicane,
À chaque instant, au moindre appel,
Dans mes mille occultes organes!...
J’aurais voulu vivre à grands traits,
Le long d’un classique programme
Et m’associant en un congrès
Avec quelque classique femme.
Mais peut-il être question
D’aller tirer des exemplaires
De son individu si on
N’en a pas une idée plus claire?...
O Casamento
(Eric Bowman: pintor norte-americano)
Caso Redibitório (Matrimônio)
Minh’alma tem sete dons raros!
E tantos quantos ou mais que as obras-
primas. Micróbios vis – milhares! –
tornam-me um campo de manobras.
Ora, o sufrágio universal!
Lança, chicaneando, insultos,
cada instante, ao menor sinal,
entre meus mil órgãos ocultos!...
Quisera viver com sucesso,
segundo um clássico programa
e associar-me, num congresso,
a alguma clássica madama.
Podemos pôr, contudo, em pauta
reproduzirmos nossa cara
em várias cópias, se nos falta
ainda uma noção mais clara?...
Referência:
LAFORGUE, Jules. Cas
Rédhibitoire (Mariage) / Caso Redibitório (Matrimônio). Tradução de Nelson
Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124
poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. Em inglês: p. 204; em
português: p. 205. (Coleção “Lazuli”)
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