Há vida no poema,
constata o poeta pernambucano, e ainda assim se abisma de como um ser vivo pode
brotar de um chão tão inorgânico quanto um pedaço de papel, um pardo e modesto
papel de embrulho, daqueles que, em tempos idos, cobriam os pães que íamos comprar
de manhã bem cedo nas panificadoras.
De germes mortos, convertidos em sangue
e sopro, assoma o poema por meio de outros tantos recursos minerais, como o
negro de carbono da tinta das canetas esferográficas ou o grafite das pontas
dos lápis. Mas o poeta está mesmo é a nos dirigir gracejos nessas suas
ponderações acobertadoras, porque entre o grafite e o papel se encontra o
elemento mais relevante nesse processo de criação: os seus próprios neurônios –
usina que transforma estímulos em palavras.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo
Neto
(1920-1999)
O Poema
A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.
Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?
Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?
Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo
com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?
*
O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.
É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;
é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.
Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?
Nenúfares
(Claude
Monet: pintor francês)
Referência:
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário