Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 16 de maio de 2018

João Cabral de Melo Neto - O Poema ‎

Há vida no poema, constata o poeta pernambucano, e ainda assim se abisma de como um ser vivo pode brotar de um chão tão inorgânico quanto um pedaço de papel, um pardo e modesto papel de embrulho, daqueles que, em tempos idos, cobriam os pães que íamos comprar de manhã bem cedo nas panificadoras.

De germes mortos, convertidos em sangue e sopro, assoma o poema por meio de outros tantos recursos minerais, como o negro de carbono da tinta das canetas esferográficas ou o grafite das pontas dos lápis. Mas o poeta está mesmo é a nos dirigir gracejos nessas suas ponderações acobertadoras, porque entre o grafite e o papel se encontra o elemento mais relevante nesse processo de criação: os seus próprios neurônios – usina que transforma estímulos em palavras.

J.A.R. – H.C.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

O Poema

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?

*

O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;

é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

Nenúfares
(Claude Monet: pintor francês)

Referência:

MELO NETO, João Cabral de. O poema. In: __________. Obra completa. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2003, p. 76-77.

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