Neste poema, redigido durante a evacuação de Tashként, a poetisa surge
como leitora a reproduzir uma atmosfera confidencial de uma conversa direta,
cujo assunto são suas preferências, declinando-lhes as razões, as quais, no
caso, não se vinculam exatamente ao conteúdo ou ao resultado do enredo dos
livros.
Isso porque, no momento presente, no qual se tem conhecimento da
história, já há um considerável interregno em relação ao tempo em que se
passaram as contingências a que os personagens estiveram submetidos, o que lhes
atenua o excesso de emoções e os conflitos dos quais decorreram, já nos
parecendo que “a eternidade veio a se tornar cinza” – expressão certamente
capturada ao clássico de Mark Twain, “As Aventuras de Tom Sawyer”.
A poetisa completa o diálogo com o leitor revelando-lhe o segredo
principal dos escritores: sem a audiência, o autor se tornaria
“irremediavelmente sozinho”, o que o leva ao recurso último da astúcia ou do sarcasmo,
para então ser rememorado ou bem pela urbanidade original ou bem pelo espírito
zombeteiro.
Ao final, fatos que me são desconhecidos, permeados por algum efeito
cômico, revelam muitas incertezas para o leitor desavisado, em relação ao
“final espetacular” tomado como exemplo por Anna: permanecem incógnitos o lugar
da Ásia Central onde eles se passaram, o nome do autor do perfil misterioso, o
sexo da pessoa retratada e a natureza dos sons quase inaudíveis que aparecem,
em especial, na véspera do ano-novo...
J.A.R. – H.C.
Anna Akhmátova
(1889-1966)
А в книгах я последнюю страницу
А в книгах я последнюю страницу
Всегда любила больше всех других,–
Когда уже совсем неинтересны
Герой и героиня, и прошло
Так много лет, что никого не жалко,
И, кажется, сам автор
Уже начало повести забыл,
И даже «вечность поседела»,
Как сказано в одной прекрасной книге,
Но вот сейчас, сейчас
Всё кончится, и автор снова будет
Бесповоротно одинок, а он
Еще старается быть остроумным
Или язвит – прости его Господь! –
Прилаживая пышную концовку,
Такую, например:
...И только в двух домах
В том городе (название неясно)
Остался профиль (кем-то обведенный
На белоснежной извести стены),
Не женский, не мужской, но полный тайны.
И, говорят, когда лучи луны –
Зеленой, низкой, среднеазиатской –
По этим стенам в полночь пробегают,
В особенности в новогодний вечер,
То слышится какой-то легкий звук,
Причем одни его считают плачем,
Другие разбирают в нем слова.
Но это чудо всем поднадоело,
Приезжих мало, местные привыкли,
И, говорят, в одном из тех домов
Уже ковром закрыт проклятый профиль.
25 ноября 1943
Ташкент
Natureza-Morta com Livros, Carta e Tulipa
(Charles Emmanuel Biset:
pintor belga)
E nos livros, era sempre a última página
E nos livros, era
sempre a última página
a que eu preferia a
todas as outras –
quando já não
interessavam mais
nem o herói nem a
heroína, e já se tinham passado
tantos anos, que
ninguém mais sentia pena deles;
o próprio autor
parece que já
se esquecera do resto
de sua história,
e até mesmo “a
Eternidade ficara grisalha”,
como já foi dito em
um belo livro;
e é agora, é agora
mesmo
que tudo está para se
acabar, e o autor ficará de novo
irremediavelmente,
embora ainda tente
ser astuto ou
sarcástico – que Deus o perdoe! –
experimentando, para
o seu livro, um final espetacular,
como este aqui, por
exemplo:
...E em duas casas
apenas
daquela cidade (o
nome não está claro)
permaneceu o perfil
(que alguém esboçou
na parede caiada de
branco)
não de uma mulher, ou
de um homem,
mas de algo mais
cheio de mistério
e, dizem, quando os
raios da lua –
essa lua baixa e
esverdeada da Ásia Central –
escorre sobre os
muros à meia-noite,
principalmente na
véspera do ano-novo,
escuta-se um som
quase inaudível
e, embora haja quem
nele veja apenas um soluço,
outros afirmam
discernir nele palavras;
mas este é um
fenômeno que a todos deixa entediados
por igual;
os forasteiros são
poucos; os habitantes da cidade já se
acostumaram
e afirmam que, em uma
dessas casas,
uma tapeçaria já
encobre o perfil amaldiçoado.
25/11/1943
Tashként
Referências:
Em Russo
AKHMÁTOVA, Anna. А в книгах я последнюю страницу. Disponível neste
endereço. Acesso em: 31 mar. 2018.
Em Português
AKHMÁTOVA, Anna. E nos livros, era
sempre a última página. Tradução de Lauro Machado Coelho. In: __________. Anna Akhmátova: seleção, tradução,
apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.
p. 104-105. (L&PM Pocket; v. 751)
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