O poeta recria a letra do hino oficial brasileiro, fazendo remanescer as
suas grandes linhas mestras em palavras e ideias, para então interpolar outras
tantas palavras e ideias que, tais como as contidas nos versos esmerados de
Francisco Manuel da Silva, repercutem no imaginário pátrio, a exemplo da “Canção
do Exílio”, do maranhense Gonçalves Dias.
E já que tocamos no assunto, poderíamos pontuar ainda que Freitas Filho
altera atrevidamente a experiência que se extrai da realidade fática, pois se
Gonçalves Dias não foge à mimética do gorjeio natural dos pássaros, o poeta
carioca vai muito além, num panorama que se poderia dizer surrealista: as flores
invocadas em seus versos é que gorjeiam, sempre muito mais garridas, o que nos
leva a crer que o sentido visual do poeta se manifesta pelos ouvidos! (rs)
J.A.R. – H.C.
Armando Freitas Filho
(n. 1940)
Corpo de delito
I
Escuta o rumor nas
margens plácidas
feitas de lama,
sangue e memória.
Escuta o brado retumbante
na garganta do túnel.
Por entre as grades
do grito
o céu da liberdade
viaja
e o sol, sem Pátria,
se espalha
nesse instante, no
cimento.
Aqui, Senhor, tememos
o braço forte que
sobre os seios
se abate, sem
remorso.
Aqui, no peito, os
sussurros do coração
o muro de murros
desabado
os urros na boca do
corpo de entulho
e os erros da minha
mão
que apalpa a própria
morte.
Nesta cela que sonho
nenhum
se escreve nas
paredes
nesta sala de
azulejos lívidos
um raio de dor sempre
aceso
e vívido, à terra
desce.
O céu é o sol desta
luz
em cada nervo
e em cada um de nós
um límpido incêndio
resplandece.
Daqui escuto os
passos dos gigantes
pisando, impávidos, a
paisagem.
Escuto a marcha dos
colossos
por cima dos ossos
por cima dos mapas de
mar e grama
escuto as botas dos
passos
nas poças do corredor
cada vez mais
próximos
dos calcanhares nus
do meu futuro.
II
Sentado na cadeira do
dragão
largado no berço
profundo do chão
sobre o som do mar o
céu fulgura
com o seu sol
elétrico
que não cessa
o curto, o choque, o
surto
em chamas do dia
iluminado
nos porões iniciais
de um Novo Mundo.
As flores que aqui
gorjeiam
garridas, em suas
jaulas
se agarram na beira
da vida
que cisma e insiste
e continua avançando
por entre vadias
várzeas e charcos
e exclama e se
espanta
como a primeira
palmeira brusca
que busca o espaço
no bosque de fumaça
do horizonte.
Aonde está você, amor
eterno
que não drapeja no
vento
sua flâmula trêmula
de estrelas?
Aonde o verde-louro,
o céu de anil e mel
o lábaro, a labareda
de pano
que o látego rasga e
marca?
Aonde a glória do
passado
se o presente é este
furo
de bala na pele do
futuro?
Mas se ergues, ainda
sim
a clava forte do seu
corpo
e não foge à luta
nem teme a própria
morte
que avança armada até
os dentes
verás os raios
fúlgidos
do sol da liberdade
no céu
e neste chão de terra
que se ama!
De: “À mão livre” (1979)
Doce Estribilho
(Daniel Merriam:
pintor norte-americano)
Referência:
FREITAS FILHO, Armando. Corpo de
delito. In: ANDRADE, Mário de et al. 50
poemas de revolta. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p.
22-25.
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