Alpes Literários
Subtítulo
quinta-feira, 31 de maio de 2018
Mauro Mota - Cacto
quarta-feira, 30 de maio de 2018
Menka Shivdasani - Epitáfio
Shivdasani, poetisa
indiana, fala com denodo e honestidade, do que representa ser mulher em seu
país, expondo suas próprias ansiedades e desconsolos: ecos insinuantes de
sujeição e autoquestionamentos são ouvidos em meio à metapoética do poema,
brotando da dor que, cativa na alma, jorra livre em seus versos.
Há bastante vermelho
no dia do casamento de uma mulher no dharma hindu, desde o pó que se coloca na
divisão principal do cabelo, até a marca na testa e o sári que é empregado na
cerimônia: presumivelmente Shivdasani esteja a tomá-lo como uma metáfora
alusiva à manutenção das mulheres sob o domínio das tradicionais estruturas
conjugais indianas.
J.A.R. – H.C.
Menka Shivdasani
(n. 1961)
Epitaph
The thing to do
is feel the texture of the page
still white before the lines form,
touch the smoothness of the skin,
refined unlike the bark
once peeled away.
The trouble is,
we do not wear white
on the wedding day.
My religion calls for blood,
redness draped across the eyes,
wrapped tight around the skin.
But lines form anyway,
alphabets rounded like shoulders
or flat as hair upon the arm.
The story begins like a wrinkle on the face
and does not end
when the wrinkles freeze.
But that is when the surface
turns to white and I hold my pain
in its plastic tube,
let the fluid fall.
That’s when the poem writes itself
like an epitaph.
Mulher sentada com
relógio de pulso
(Picasso: pintor espanhol)
Epitáfio
A coisa a fazer
é sentir a textura da página
ainda branca antes da forma das linhas,
tocar a suavidade delicada
da pele, distintamente da tez
uma vez descamada.
O problema é que
não usamos branco
no dia do casamento.
Minha religião exige sangue,
drapejado carmesim entre os olhos,
bem aplicado à volta da pele.
Contudo as linhas se formam de qualquer modo,
alfabetos arredondados como ombros
ou planos como o cabelo sobre o braço.
A história começa como uma ruga no rosto
e não termina
no momento em que elas estancam.
Mas é quando a superfície
torna-se branca e confino minha dor
em seu tubo de plástico,
que deixo o fluido escorrer.
Nesse instante o poema se autocompõe
como um epitáfio.
Referência:
SHIVDASANI, Menka. Epitaph. In:
THAYIL, Jeet (Ed.). 60 indian poets. New Delhi, IN: Penguin Books
India, 2008. p. 267.
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terça-feira, 29 de maio de 2018
Jules Laforgue - Caso Redibitório (Matrimônio)
Eis um poema capaz de
deixar o leitor aturdido frente ao vocabulário empregado pelo autor, que vai
desde as referências a obras-primas, até micróbios, campo de manobras, sufrágio
universal, reprodução de rostos em cópias – seriam, no caso, os rebentos?!... –
afora o título inusitado, a sugerir que houve algum defeito ou vício oculto não
ostentado no período pré-matrimonial e que, agora, resolveu aflorar.
É o recurso imediato
às formas iconoclastas do poder criativo, em fuga dos modelos convencionais de
exteriorização das emoções, e se algo do ambiente interno merece alguma
atenção, é de lá que surge a lava de substâncias inconscientes, como num quadro
surrealista, ou, ainda, o galope vertiginoso de micro-organismos que ameaçam a
integridade física do poeta.
J.A.R. – H.C.
Jules Laforgue
(1860-1887)
Cas Rédhibitoire (Mariage)
Ah! mon ame a sept facultés!
Plus autant qui’il de chefs-d’oeuvre,
Plus mille microbes ratés
Qui m’ont pris pour champ de manoeuvre.
Oh ! le suffrage universel
Qui se bouscule et se chicane,
À chaque instant, au moindre appel,
Dans mes mille occultes organes!...
J’aurais voulu vivre à grands traits,
Le long d’un classique programme
Et m’associant en un congrès
Avec quelque classique femme.
Mais peut-il être question
D’aller tirer des exemplaires
De son individu si on
N’en a pas une idée plus claire?...
O Casamento
(Eric Bowman: pintor norte-americano)
Caso Redibitório (Matrimônio)
Minh’alma tem sete dons raros!
E tantos quantos ou mais que as obras-
primas. Micróbios vis – milhares! –
tornam-me um campo de manobras.
Ora, o sufrágio universal!
Lança, chicaneando, insultos,
cada instante, ao menor sinal,
entre meus mil órgãos ocultos!...
Quisera viver com sucesso,
segundo um clássico programa
e associar-me, num congresso,
a alguma clássica madama.
Podemos pôr, contudo, em pauta
reproduzirmos nossa cara
em várias cópias, se nos falta
ainda uma noção mais clara?...
Referência:
LAFORGUE, Jules. Cas
Rédhibitoire (Mariage) / Caso Redibitório (Matrimônio). Tradução de Nelson
Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124
poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. Em inglês: p. 204; em
português: p. 205. (Coleção “Lazuli”)
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segunda-feira, 28 de maio de 2018
Olga Savary - Insônia
Provavelmente
assediada pela insônia, a poetisa pervaga pelos domínios onde a poesia paira,
procurando transcrevê-la ao papel, de modo a inquietar “as marés do silêncio da
palavra ainda não escrita nem pronunciada”, tal que toda inquietação que lhe
vai no espírito se atenue e vingue o indesejado estado de vigília.
Ao dar continuidade
ao ensaio das palavras, Savary espera atravessar a noite fazendo revolver em
fogo mental – no cadinho alquímico do poema –, as suas próprias incertezas,
interrogantes, tribulações e adversidades, perseguindo assim, talvez num
esforço de Sísifo, o sentido último da verdade que somente as estrelas
conhecem.
J.A.R. – H.C.
Olga Savary
(n. 1933)
Insônia
A José Carlos Audíface Brito
Quero escrever um poema irritado.
Quero vingar meu sono dividido
(busco palavras que interroguem essa alquimia
do poema, que vire a noite em fogo vário
e a lua em pegada escondida atrás do muro
– vagaroso desmoronar de extinto voo).
Quero um poema ainda não pensado,
que inquiete as marés de silêncio da palavra
ainda não escrita nem pronunciada,
que vergue o ferruginoso canto do oceano
e reviva a ruína que são as poças d’água.
Quero um poema para vingar minha insônia.
Rio de Janeiro, março 1950
Em: “Espelho Provisório: 1947-1970”
I – Pássaros da Memória
Voo da Musa
(Paul Bond: pintor mexicano)
Referência:
SAVARY, Olga.
Insônia. Repertório selvagem. Obra reunida: 12 livros de poesia
(1947-1998). Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca Nacional; MultiMais; Universidade
de Mogi das Cruzes, 1998. p. 26.
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domingo, 27 de maio de 2018
Louis Simpson - Rumo ao Ocidente
A voz lírica se
identifica com os conquistadores que domaram as terras da América, descobertas
que foram por Colombo naquela histórica viagem por um oceano desconhecido, cujo
destino originário era Cathay, no noroeste da China, mas que, de fato foi dar na
Baía do México, onde os tesouros que se buscavam jamais foram encontrados.
O poema tece
paralelos entre as viagens dos primeiros imigrantes rumo à América devoluta e a
aventura primeira de Colombo, em 1492, que, partindo da região portuária de
Palos, na Espanha, a serviço do reino de Castela, com apenas três caravelas –
Santa Maria, Pinta e Nina –, chegou às ilhas das Bahamas, dando início ao
progressivo reconhecimento de todo o continente americano.
J.A.R. – H.C.
Louis Simpson
(1923-2012)
To the Western World
A siren sang, and
Europe turned away
From the high castle
and the shepherd’s crook.
Three caravels went
sailing to Cathay
On the strange ocean,
and the captains shook
Their banners out
across the Mexique Bay.
And in our early days
we did the same.
Remembering our
fathers in their wreck
We crossed the sea
from Palos where they came
And saw, enormous to
the little deck,
A shore in silence
waiting for a name.
The treasures of
Cathay were never found.
In this America, this
wilderness
Where the axe echoes
with a lonely sound,
The generations labor
to possess
And grave by grave we
civilize the ground.
Despenhadeiro do
Colorado
(Thomas Moran: pintor
norte-americano)
Rumo ao Ocidente
Ao canto da sereia, a
Europa se afastou
Do altivo castelo e
do báculo do pastor.
Três caravelas
singraram rumo a Cathay
Em ignoto oceano, e
os capitães içaram
Suas bandeiras sobre
a Baía do México.
Agimos assim em
nossos primeiros dias.
Evocando nossos pais
em seu soçobro,
Desde a mesma Palos,
cruzamos o mar
E vimos, vasta para o
modesto convés,
Uma costa silente à
espera de um nome.
Não demos com os
tesouros de Cathay.
Aqui na América,
neste lugar selvagem,
Onde o som do machado
ecoa solitário,
As gerações trabalham
por suas posses,
E tumba após tumba,
civilizamos a terra.
Referência:
SIMPSON, Louis. To
the western world. In: HALL, Donald (Ed.). Contemporary american poetry.
Revised and enlarged edition. Selected and introduced by Donald Hall. 2nd. ed.
Kingsport, TN: Penguin Books, 1974. p. 117.
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