Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 29 de março de 2018

Mia Couto - O bairro da minha infância ‎

O poeta busca romper com a leitura naturalística que fazemos dos fatos, da morte em especial: sua visão contempla apenas o fenecer das coisas, porque as criaturas têm o dom de se reproduzir e, por conseguinte, perdurar no fluxo dos anos, condenando-se à eternidade.

Descreve Couto as suas memórias no bairro onde viveu a infância: são elas fenômenos vivos que persistem nesse lugar que a tudo presenciou, mas que, agora, é um túmulo, enquanto que a interpretação possível do passado, somente o espírito animado é capaz de fazê-la percutir.

J.A.R. – H.C.

Mia Couto
(n. 1955)

O bairro da minha infância

Não são as criaturas que morrem.

É o inverso:
só morrem as coisas.

As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.

E quem de si nasce
à eternidade se condena.

Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.

A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.

Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.

Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.

Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.

A morte
é o impossível abraço da água.

A terna graça de um dia findo
que a mim jamais retornará
(Walter Langley: pintor inglês)

Referência:

COUTO, Mia. O bairro da minha infância. In: __________. Poemas escolhidos. Seleção do autor. Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2016. p. 140-141.

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