O poeta busca romper com a leitura naturalística que fazemos dos fatos, da
morte em especial: sua visão contempla apenas o fenecer das coisas, porque as
criaturas têm o dom de se reproduzir e, por conseguinte, perdurar no fluxo dos
anos, condenando-se à eternidade.
Descreve Couto as suas memórias no bairro onde viveu a infância: são
elas fenômenos vivos que persistem nesse lugar que a tudo presenciou, mas que,
agora, é um túmulo, enquanto que a interpretação possível do passado, somente o
espírito animado é capaz de fazê-la percutir.
J.A.R. – H.C.
Mia Couto
(n. 1955)
O bairro da minha infância
Não são as criaturas
que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não
morrem
porque a si mesmas se
fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se
condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o
meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde
dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres
risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui
soberano
de castelos e
quimeras.
Volto a tocar a
parede fria
e sinto em mim o
pulso
de quem para sempre
vive.
A morte
é o impossível abraço
da água.
A terna graça de um dia findo
que a mim jamais retornará
(Walter Langley:
pintor inglês)
Referência:
COUTO, Mia. O bairro da minha infância.
In: __________. Poemas escolhidos.
Seleção do autor. Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2016. p. 140-141.
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