O poeta pressente em si mesmo o vagar de um fantasma que lhe assola
pelos próprios olhos refletidos em um espelho, como um lírio surrealista “crescendo
no lodo”. Mas não exatamente como se fosse a poesia, a teor da “antiode” de
Melo Neto, ela que viceja nos interstícios da decomposição...
Talvez Rivera esteja a especular sobre a proximidade da morte. Contudo, não
de uma morte que sucumba aos desígnios dos túmulos, dos parentes finados, das
casas em que estes viveram, senão de um projeto de conversão ao eterno, ao
intangível, ao mistério, expressão mais vívida da glória e da perpetuidade.
J.A.R. – H.C.
Bueno de Rivera
(1911-1982)
O Fantasma
Não nasceu das
trevas,
não surgiu do limbo.
É apenas a ideia,
a mais branca ideia.
Madrugada eterna
no polo invisível.
Não o vejo em torno,
não lhe aperto as
mãos,
as mãos frias, moles.
Pressinto-o em mim
como um lírio enorme
crescendo no lodo.
Nasceu no meu dia,
dormiu no meu berço.
Não estava ao meu
lado,
mas viveu no meu
sonho.
Não é sombra, é a
febre,
a ideia mais pura,
presença do eterno;
talvez o intangível,
talvez o mistério.
Não lembra os
espectros
dos túmulos abertos
e de casas antigas
onde parentes mortos
soluçam na alcova.
Não espanta, não
fere.
É manso e invisível,
calado e distante,
apenas encanta,
apenas sugere.
Passeia tranquilo
no fundo mais fundo
do eu infinito.
Sinto-lhe os passos
nos porões sombrios.
Amigo impossível
que procuro, olhando
os meus olhos no
espelho.
Em: “Mundo Submerso” (1944)
O Espectro do ‘Sex-Appeal’
(Salvador Dalí:
pintor espanhol)
Referência:
RIVERA, Bueno de. O Fantasma. In:
BANDEIRA, Manuel (Ed.). Apresentação da
poesia brasileira: seguida de uma antologia de versos. 3. ed. atualizada.
Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957. p.
408-409.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário