O título desta postagem pode até evocar a fala de Hamlet, no monólogo em
meio à primeira cena do terceiro ato do drama homônimo de Shakespeare. Mas a
semelhança tende a logo se dissipar: é que o diplomata, escritor e poeta gaúcho,
como em muitos dos poemas que compõem a obra em referência, pervaga por ideias
que mesclam o esoterismo, a maçonaria e, parece-me, o espiritismo, lançando
invectivas contra céticos e ateus.
Diz ele que, buscando a verdade, espera encontrar Deus – e aqui se tem
mais uma associação a pensamentos místicos de terceiros, que me escuse o
leitor, pois tal ideia fez-me lembrar de uma famosa reflexão de Pascal, de onde extraio o
seguinte excerto: “Não é este o país da verdade: esta erra, desconhecida, entre
os homens. Deus a envolveu com um véu que a mantém desconhecida dos que não lhe
ouvem a voz” (PASCAL, 2005, p. 276; n. 843).
J.A.R. – H.C.
Múcio Teixeira
(1857-1926)
O ser e o não ser
Nem todos podemos
dizer sinceramente:
“temos vida”; porque a vida não
nos pertence,
nem podemos dominá-la,
ou monopolizá-la.
O mais que podemos afirmar,
sem vaidade
e sem presunção, é
que somos os instrumentos
por meio dos quais um
princípio universal
produz a Vida.
(Franz Hartmann)
Que me importa que os
mais fiquem aqui de rastros?
Eu, não; hei de subir
– a topetar os astros,
Enchendo os meus
pulmões do aroma dos jardins
Onde rebentam sóis e
adejam querubins.
O rumor das paixões,
entre o pó, me asfixia;
Prefiro ouvir no Além
a perene harmonia
Que embala no
infinito esses núcleos astrais
Em constante obediência
às leis universais.
Desde a mais tenra idade
eu sempre tive a sorte
De acreditar que
estava a dois passos da morte;
E não me assustou
nunca a ideia de morrer,
Pois só depois da
morte é que espero viver.
A vida aqui na terra
é uma simples miragem
Que apenas ilumina
incompleta viagem...
Nessa pluralidade
intérmina de sóis
É que existem os
bons, os justos, os heróis,
Cujas nobres ações,
sem lágrimas nem sangue,
Não deixam sobre a
arena o seu irmão exangue.
Eu não posso entender
as néscias multidões
Que dividem o globo
em diversas nações
E por uma bandeira,
um trapo exposto ao vento,
Vivem a se matar, num
furor truculento.
Quando compreenderão
esses homens brutais
Que dão um rude
exemplo aos outros animais?!
Estes, no ínfimo
plano em que nós os deixamos,
Não praticaram nunca
o mal que praticamos,
São honestos e bons,
generosos e fiéis,
Não enchem arsenais
nem vivem nos quartéis,
Não inventam canhões
e navios de guerra
Que escurecem o mar e
ensanguentam a terra.
Por que há de o
militar não ser como o civil?
Só porque este não
mata é que há de ser um vil?
Acho esta distinção –
uma monstruosidade:
Luta-se ou não se
luta, eis a triste verdade;
Quando se luta, já
que há pátria, o cidadão
Defende a pátria e o
lar com as armas na mão;
Mas quando não se
luta – o cidadão trabalha,
Sem fazer da bandeira
uma escura mortalha.
São meras abstrações
os costumes e as leis
Que ligam, não
ligando, os cidadãos e os reis;
Perfumes do saber de
altos legisladores,
Que aspiraram fazer
dos escravos senhores,
E que, perfumes sendo,
ao vento das paixões
Se dissipam, na paz
ou nas revoluções.
Tem uma história
própria a terra, onde se somem
Todas as tradições efêmeras
do homem,
Que só apareceu
muitos séculos depois
Das plantas e os cristais,
como os peixes e os bois,
Além da sucessão de
habitantes diversos
Cuja vala comum
pluralizou-se em berços
De que foram se
erguendo as novas gerações
Ao influxo do calor,
da luz, das vibrações.
Nesta ilusão do ser,
ante o não ser terrível,
O que vemos é falso:
o real é o invisível.
Deixo a dúvida e o pó
aos céticos e ateus,
E buscando a Verdade
espero encontrar Deus.
Rio, 1915.
Em: “Livro Primeiro - Contemplação e
Crença”
A criação de Adão no Paraíso
(Jan Brueghel the
Younger: pintor flamengo)
Referências:
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Consultoria de Marilena de Souza Chauí. Tradução de
Olívia Bauduh. São Paulo: Nova Cultural, 2005. (“Os Pensadores”)
TEIXEIRA, Múcio. O ser e o não ser. In:
__________. Terra incógnita: poema. São
Paulo, SP: Casa Duprat Editora, 1916. p. 179-182.
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