Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Múcio Teixeira - O ser e o não ser

O título desta postagem pode até evocar a fala de Hamlet, no monólogo em meio à primeira cena do terceiro ato do drama homônimo de Shakespeare. Mas a semelhança tende a logo se dissipar: é que o diplomata, escritor e poeta gaúcho, como em muitos dos poemas que compõem a obra em referência, pervaga por ideias que mesclam o esoterismo, a maçonaria e, parece-me, o espiritismo, lançando invectivas contra céticos e ateus.

Diz ele que, buscando a verdade, espera encontrar Deus – e aqui se tem mais uma associação a pensamentos místicos de terceiros, que me escuse o leitor, pois tal ideia fez-me lembrar de uma famosa reflexão de Pascal, de onde extraio o seguinte excerto: “Não é este o país da verdade: esta erra, desconhecida, entre os homens. Deus a envolveu com um véu que a mantém desconhecida dos que não lhe ouvem a voz” (PASCAL, 2005, p. 276; n. 843).

J.A.R. – H.C.

Múcio Teixeira
(1857-1926)

O ser e o não ser


Nem todos podemos dizer sinceramente:
“temos vida”; porque a vida não nos pertence,
nem podemos dominá-la, ou monopolizá-la.
O mais que podemos afirmar, sem vaidade
e sem presunção, é que somos os instrumentos
por meio dos quais um princípio universal
produz a Vida.
(Franz Hartmann)


Que me importa que os mais fiquem aqui de rastros?
Eu, não; hei de subir – a topetar os astros,
Enchendo os meus pulmões do aroma dos jardins
Onde rebentam sóis e adejam querubins.

O rumor das paixões, entre o pó, me asfixia;
Prefiro ouvir no Além a perene harmonia
Que embala no infinito esses núcleos astrais
Em constante obediência às leis universais.

Desde a mais tenra idade eu sempre tive a sorte
De acreditar que estava a dois passos da morte;
E não me assustou nunca a ideia de morrer,
Pois só depois da morte é que espero viver.

A vida aqui na terra é uma simples miragem
Que apenas ilumina incompleta viagem...
Nessa pluralidade intérmina de sóis
É que existem os bons, os justos, os heróis,
Cujas nobres ações, sem lágrimas nem sangue,
Não deixam sobre a arena o seu irmão exangue.

Eu não posso entender as néscias multidões
Que dividem o globo em diversas nações
E por uma bandeira, um trapo exposto ao vento,
Vivem a se matar, num furor truculento.

Quando compreenderão esses homens brutais
Que dão um rude exemplo aos outros animais?!
Estes, no ínfimo plano em que nós os deixamos,
Não praticaram nunca o mal que praticamos,
São honestos e bons, generosos e fiéis,
Não enchem arsenais nem vivem nos quartéis,
Não inventam canhões e navios de guerra
Que escurecem o mar e ensanguentam a terra.

Por que há de o militar não ser como o civil?
Só porque este não mata é que há de ser um vil?
Acho esta distinção – uma monstruosidade:
Luta-se ou não se luta, eis a triste verdade;
Quando se luta, já que há pátria, o cidadão
Defende a pátria e o lar com as armas na mão;
Mas quando não se luta – o cidadão trabalha,
Sem fazer da bandeira uma escura mortalha.

São meras abstrações os costumes e as leis
Que ligam, não ligando, os cidadãos e os reis;
Perfumes do saber de altos legisladores,
Que aspiraram fazer dos escravos senhores,
E que, perfumes sendo, ao vento das paixões
Se dissipam, na paz ou nas revoluções.

Tem uma história própria a terra, onde se somem
Todas as tradições efêmeras do homem,
Que só apareceu muitos séculos depois
Das plantas e os cristais, como os peixes e os bois,
Além da sucessão de habitantes diversos
Cuja vala comum pluralizou-se em berços
De que foram se erguendo as novas gerações
Ao influxo do calor, da luz, das vibrações.

Nesta ilusão do ser, ante o não ser terrível,
O que vemos é falso: o real é o invisível.
Deixo a dúvida e o pó aos céticos e ateus,
E buscando a Verdade espero encontrar Deus.

Rio, 1915.

Em: “Livro Primeiro - Contemplação e Crença”

A criação de Adão no Paraíso
(Jan Brueghel the Younger: pintor flamengo)


Referências:

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Consultoria de Marilena de Souza Chauí. Tradução de Olívia Bauduh. São Paulo: Nova Cultural, 2005. (“Os Pensadores”)

TEIXEIRA, Múcio. O ser e o não ser. In: __________. Terra incógnita: poema. São Paulo, SP: Casa Duprat Editora, 1916. p. 179-182.

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