Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Jorge de Sena - Natal – 1950

Sena ainda faz reverberar, em pleno Natal de 1950, cinco anos passados desde o momento em que se findara a 2GM, os efeitos remanescentes de angústia por tudo quanto desmoronou durante o conflito, a morte onipresente, agora como eflúvios da aurora, enquanto um tempo novo, pleno de esperanças, ainda não se convolara de mera hipótese à realidade concreta.

Mandar e ser mandado, duas vertentes de uma relação que perdura com ou sem legitimação, com consentimento ou sem permissão: não sem motivos, o poeta percebe a ocorrência de um Natal assemelhado aos velhos Natais – razão pela qual cantar a época, de nossa parte, não passaria de mera preservação de um hábito talvez já meio cediço.

J.A.R. – H.C.

Jorge de Sena
(1919-1978)

Natal – 1950 (*)

Nenhum Natal será possível: sei
que tudo enfim suspenso aguarda
não já Natais sempre de guerra mas
a morte iluminada como aurora
entre esta gente que se junta rindo
e as luzes interiores, muitas cabeças juntas;
entre as lágrimas de ternura e os murmúrios de esperança,
entre as vozes e os silêncios, as pedras e as árvores,
entre muralhas de janelas sob a chuva,
entre agonias dos que lutam porque são mandados
e a cobarde angústia dos que apenas mandam,
no meio da vida, círculo de fogo,
à luz de que se vê uma calçada suja
de restos de comida e de papéis rasgados
– se sei, embora saiba, quanto soube:
ah canto do meu canto, olhar do meu olhar,
nenhum Natal, bem sei, mas outra gente,
e tanta gente, e mesmo que um só fosse,
já louco, envelhecido, apenas hábito,
que poderei fazer, senão humildemente
cantar?

(1950)

O censo em Belém
(Pieter Bruegel, o Velho: pintor flamengo)

Nota do Autor:

(*) Este poema faz parte da sequência dos Natais in Pedra Filosofal.

Referência:

SENA, Jorge de. Natal – 1950. In: __________. Poesia - I. Lisboa, PT: Livraria Morais Editora, 1961. p. 191. (“Círculo de Poesia”; n. 13)
 

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