Sena ainda faz reverberar, em pleno Natal de 1950, cinco anos passados
desde o momento em que se findara a 2GM, os efeitos remanescentes de angústia
por tudo quanto desmoronou durante o conflito, a morte onipresente, agora como
eflúvios da aurora, enquanto um tempo novo, pleno de esperanças, ainda não se
convolara de mera hipótese à realidade concreta.
Mandar e ser mandado, duas vertentes de uma relação que perdura com ou
sem legitimação, com consentimento ou sem permissão: não sem motivos, o poeta
percebe a ocorrência de um Natal assemelhado aos velhos Natais – razão pela
qual cantar a época, de nossa parte, não passaria de mera preservação de um
hábito talvez já meio cediço.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
Natal – 1950 (*)
Nenhum Natal será
possível: sei
que tudo enfim
suspenso aguarda
não já Natais sempre
de guerra mas
a morte iluminada
como aurora
entre esta gente que
se junta rindo
e as luzes
interiores, muitas cabeças juntas;
entre as lágrimas de
ternura e os murmúrios de esperança,
entre as vozes e os
silêncios, as pedras e as árvores,
entre muralhas de
janelas sob a chuva,
entre agonias dos que
lutam porque são mandados
e a cobarde angústia
dos que apenas mandam,
no meio da vida, círculo
de fogo,
à luz de que se vê
uma calçada suja
de restos de comida e
de papéis rasgados
– se sei, embora
saiba, quanto soube:
ah canto do meu
canto, olhar do meu olhar,
nenhum Natal, bem sei,
mas outra gente,
e tanta gente, e
mesmo que um só fosse,
já louco, envelhecido,
apenas hábito,
que poderei fazer,
senão humildemente
cantar?
(1950)
O censo em Belém
(Pieter Bruegel, o
Velho: pintor flamengo)
Nota do Autor:
(*) Este poema faz parte da sequência
dos Natais in Pedra Filosofal.
Referência:
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