A fazer menção ao primeiro grande conflito de maiores dimensões – a
Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre 1914-1918 –, o poeta gaúcho tece uma
grande súplica pela paz, exatamente quando o embate ainda estava longe de
terminar, no derradeiro dia do ano de 1916.
E aqui se revela o potencial que tem a guerra para expressar a
insanidade humana: com toda a intencionalidade possível, os Estados se armam
para amparar uma visão separatista, permeada pela inflexão estanque do “nós” contra
os “outros”, na qual a pretensa defesa da liberdade e da democracia busca
ocultar a verdade mais nítida da intervenção, da violência e do militarismo,
afastando-nos, é claro, do ideal de sabedoria, justiça e convivência pacífica.
J.A.R. – H.C.
Eduardo Guimaraens
(1892-1928)
Prece da Última Noite do Ano
Última noite do ano.
Silêncio. Vagamente,
há, sobre o mar e a
terra,
como o sussurro
humano
de um imortal desejo
que, à luz dos
astros, erra.
Última noite do ano!
Por que este anseio
ardente
que chora? Vagamente
foge, pelo ar, o
adejo
de um anjo de
extermínio.
Sangra o rancor
humano.
Vai pelo mundo a
guerra!
Na sombra sem aurora
do trágico domínio,
impera, só, divina,
sinistra e fria, a
Morte!
Nem ouve o amor que
implora
misericórdia! E o
grito
dos que não doma a
sorte!
E o orgulho que se
inclina!
E o desespero insano
que em vão, as mãos
levanta
para o álgido
infinito!
Última noite do
ano...
Há névoa. Um sino
canta.
E, trêmulo, anuncia
que outro ano surge.
Desce,
sobre a manhã que
dorme,
um límpido, sereno
repouso. E, pouco a
pouco,
desse silêncio
enorme,
como se fora um treno
que aumenta, pouco a
pouco,
para o esplendor
eterno
sobe uma imensa
prece.
Ouve-a, Senhor! É
dela
que todo o azul
palpita,
esplende e se
constela!
Ouve-a, Senhor! Do
inferno
secreto e da infinita
angústia em que a
alma triste
soluça, a voz
floresce
e, como um lírio
imenso,
vai incensar do aroma
da alma, do íntimo
incenso
puro, a mansão
celeste
onde o teu trono
existe!
Ouve-a, que pede
a tua misericórdia!
Toda!
Imensa, inexprimível!
A cada pranto, um
lenço!
Sobre a nudez, a
veste
cristã! E, sobre o
mundo
a paz!
Paz sobre Roma,
sobre Berlim e o
mundo!
Ouve-a, Senhor! E, a
esta hora,
à luz do céu
profundo,
faze melhor o lábio
que o espírito
interpreta.
– Sinta a Verdade o
sábio!
E a Beleza o poeta!
Ouve a oração que
chora,
Senhor! Que, a bênção
desça
sobre este grande
anseio!
E seja o humilde
amado
e belo! E alegre o
triste!
Feliz, quem o mereça!
Que a prece
inumerável
suba ao teu vasto
seio!
Ouve-a, Senhor! É o
canto
do mundo prosternado
e pálido de espanto!
Ouve-a que se insinua
pela alma inexprimível
dos seres que criaste,
das coisas que
criaste
sobre este chão vazio;
e que, sem pausa,
bela
e grande, sobe, voa,
esplende e se constela
e, pelo céu, ecoa!
E alegra a terra toda
e o grande mar
sombrio!
E acalma a febre em
chama!
E aclara o abismo
escuro!
E a sombra do Futuro!
E o sonho de quem
ama!
(1916)
Em: “Rimas do Reino dos Céus”
Manhã em Janeiro
(Gerald Gardiner:
pintor inglês)
Referência:
GUIMARAENS, Eduardo. Prece da última
noite do ano. In: __________. A divina
quimera. Edição definitiva organizada e prefaciada por Mansueto Bernardi.
Porto Alegre, RS: Livraria Globo, 1944. p. 395-397.
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