Harry Howith (1934-2014), poeta canadense, destila certas formulações
satíricas em meio à cena de dor, experimentada pelo amigo – Daniel Knight –,
que está morrendo aos poucos de câncer, internado num hospital: a derradeira inflexão
busca desnortear o leitor, de forma a acentuar a antinomia que se define pelas “prioridades”
do título.
O amigo volta-se já aos primados espirituais, mesmo que ainda exteriorize
algumas esperanças remanescentes de cura. Mas o poeta, por outro lado,
encontra-se submerso na prevalência de suas necessidades financeiras e
materiais – e como que se desculpando, acaba por pedir emprestado algum dinheiro
ao moribundo!
Custa-me crer que os fatos sucederam exatamente como Howith os descreve:
talvez a luta por manter-se vivo – de uma banda, no meio do caminho; de outra, nas
regiões lindeiras da morte –, serviu apenas de mote para a elaboração do poema.
Fosse como fosse, de minha parte, penso que em tais circunstâncias, nem cogitaria
em buscar ajuda, ainda que premido pela escassez!
J.A.R. – H.C.
A morte de Sócrates
(Jacques-Louis David:
pintor francês)
Priorities
in memoriam Daniel Knight
A classic carcinoma
is deployed
through my friend’s
lymph and marrow;
he, devout Catholic,
doubtless
prays privately to
reconcile
God’s sparrow-charity
with slow
twenty-six-year-old
dying, but
with visitors at his
hospital bed,
between chemotherapy
and radiation,
he jokes about the
cigarette machine
in the lobby, and
bears with love
memorial dreams of
health that flicker
sometimes in his
lovely wife’s clear eyes.
Meanwhile, twisting
wire coathangers
into fantastical and
meaningless mandalas,
I bitch about going
broke
on ten thousand a
year, and listen to you
fret on your
psychological guitar
about “more honest
human relationships”.
Hobbling on canes my
cancer-blasted friend
lights candles for
our conversion,
as I light up another
cigarette,
and you light up
another epigram,
and many ingenious
sick cells
strangle his body and
our souls.
If this is seemly,
loan me twenty bucks
till payday.
No leito da morte
(Edvard Munch: pintor
norueguês)
Prioridades
in memoriam Daniel Knight
Um clássico carcinoma
se expande
através da linfa e da
medula de meu amigo;
ele, um católico
devoto, sem dúvida,
ora em particular
para reconciliar
a insondável caridade
de Deus com a lenta
morte aos vinte e
seis anos, mas
com os que o visitam
em seu leito hospitalar,
entre a quimioterapia
e a radiação,
ele galhofa na
antessala, junto à
máquina de cigarros,
e sustenta com amor
sonhos memoráveis de
saúde que, vez por outra,
cintilam nos olhos
claros de sua adorável esposa.
Enquanto isso,
retorcendo cabides metálicos
em mandalas
fantásticas e sem sentido,
atormento-me em ir à
falência
com dez mil por ano,
e ouço você
preocupar-se, à roda
de seu violão psicológico,
com “relações humanas
mais honestas”.
Manquejando sobre
bengalas, meu amigo,
arruinado pelo
câncer,
acende velas pela nossa
conversão,
enquanto acendo outro
cigarro,
e você inflama outro
epigrama,
e muitas células
engenhosas e doentes
estrangulam seu corpo
e nossas almas.
Se isto for decente,
empreste-me vinte
dólares até o dia
do pagamento.
Referência:
HOWITH, Harry. Priorities. In: LOCHHEAD,
Douglas; SOUSTER, Raymond (Eds.). Made
in Canada: new poems of the seventies. Ottawa (CA): Oberon Press, 1970
(reprinted 1971). p. 103.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário