À volta com o próprio umbigo, a poesia se autoenuncia nestes dois poemas
do escritor gaúcho, ela que se oculta nos interstícios de tudo quanto configura
a matéria hábil a tomar de assalto o espírito humano, como uma flor capaz de rebentar
mesmo das águas turvas de um pântano.
Aliás, a imagem evocada por Trevisan fez-me relembrar termos similares
empregados pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, especificamente no
poema intitulado “Antiode”: a poesia
tendo por origem elementos orgânicos os mais triviais.
J.A.R. – H.C.
Armindo Trevisan
(n. 1933)
A Um Jovem Poeta
Não escrevas um poema
enquanto teu coração
arde. Deixa que a
emoção arrefeça.
Depois, em silêncio,
com ajuda da cabeça,
põe um tijolo sobre
outro tijolo.
Tijolo? Tão frio o
barro cozido...
Mas é dentro desse
barro que acontecem as cópulas,
e as crianças choram
pedindo leite.
Imagina um fruto
amadurecido,
que pende de uma árvore:
o vento o balança,
e o sol continua a
aquecê-lo. Esta dança,
que não se vê,
é a poesia.
Reminiscências Arqueológicas
do “Angelus” de Millet
(Salvador Dalí:
pintor espanhol)
Leitores de Poesia
Leitores de poesia,
notastes como uma rã,
uma moeda, uma asa de
inseto,
bastam para fazer a
poesia emergir do pântano
em que está, ou das
águas ultramarinas de um lago,
no qual se escondeu
de olhares invejosos?
Digo mais: um mamilo
incendiado de desejo,
no corpo de uma
mulher, a traz de volta
ao nosso mundo
sórdido, ambicioso, e injusto.
Pequena Serenata Noturna
(Dorothea Tanning:
pintora norte-americana)
Referências:
TREVISAN, Armindo. A um jovem poeta.
In: A serpente na grama. Porto
Alegre, RS: Mercado Aberto, 2001. p. 174.
TREVISAN, Armindo. Leitores de poesia.
In: O sonho nas mãos. Porto Alegre,
RS: AGE, 2004. p. 127.
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