O poeta lusitano de hoje interage com o poeta lusitano de ontem, não
exatamente um seu contemporâneo, por meio do tema do inverno, propondo-lhe um
conjunto de indagações que se dirigem a questionar o desconsolo de Augusto Gil
ao ver crianças a andar descalças sobre a neve, por trás das cômodas e
protetoras vidraças de sua residência.
O texto de Cabral, como se pode constatar, não contém conjunções
aditivas como o “e”, tampouco sinais de pontuação, à exceção da interrogação
final. Presumo eu, por conseguinte, que os espaços maiores entre termos
sequentes de versos substituam as vírgulas, propondo ao leitor inflexões mais
espaçadas na modulação de voz.
Quanto à epígrafe com final reticente, provavelmente alude à expressão assaz
empregada em Portugal – “Nove meses de inverno e três de inferno” –, com a qual
se singulariza o clima de regiões ao norte do país, com temperaturas mais
baixas por longo tempo, e mais bem quentes em poucos meses do ano.
J.A.R. – H.C.
A. M. Pires Cabral
(n. 1941)
Inverno
Nove meses de inverno...
chamais a isso
inverno a esse lúdico
intenso cívico
síncrono calor
à límpida presença de
Cristo regressado
por um dia aos presentes ao
fogão de sala
chamais a isso
inverno Augusto Gil
comovido por dentro
das vidraças inverno isso
a aguardente as filhós o baile de fim de ano
e então
à teimosa assunção ao
denso e destituto
desfavor aos
corpos nus à chuva ao suão
à nortada devassando
enxergas corações
à geada nos ossos nas
orelhas dos pezinhos
de criança aos traços
miniaturais – mas lá fora
ao lume apagado à
cinza fria e remexida
à deserção do pão à
arca exausta à talha descorrida
à roxa e trágica
novena que chamais?
De: “Algures a Nordeste” (1974)
Inverno
(Francisco de Goya:
pintor espanhol)
Elucidário:
Filhó – bolinho feito de farinha e
ovos, frito e polvilhado com açúcar e canela;
Destituto – privado, posposto, carente,
destituído;
Suão – vento quente e abafado que sopra
do sul;
Nortada – vento áspero e frio que sopra
do norte;
Enxerga – colchão grosseiro de palha, cama
pobre;
Descorrer – estirar o que estava
recolhido ou enrolado.
Referência:
CABRAL, António Manuel Pires. Inverno. In:
MOURÃO-FERREIRA, David; SEIXO, Maria Alzira (Orgs.). Portugal: a terra e o homem. II Volume - 3ª Série. Lisboa, PT:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. p. 99.
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