Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

António Manuel Pires Cabral - Inverno ‎

O poeta lusitano de hoje interage com o poeta lusitano de ontem, não exatamente um seu contemporâneo, por meio do tema do inverno, propondo-lhe um conjunto de indagações que se dirigem a questionar o desconsolo de Augusto Gil ao ver crianças a andar descalças sobre a neve, por trás das cômodas e protetoras vidraças de sua residência.

O texto de Cabral, como se pode constatar, não contém conjunções aditivas como o “e”, tampouco sinais de pontuação, à exceção da interrogação final. Presumo eu, por conseguinte, que os espaços maiores entre termos sequentes de versos substituam as vírgulas, propondo ao leitor inflexões mais espaçadas na modulação de voz.

Quanto à epígrafe com final reticente, provavelmente alude à expressão assaz empregada em Portugal – “Nove meses de inverno e três de inferno” –, com a qual se singulariza o clima de regiões ao norte do país, com temperaturas mais baixas por longo tempo, e mais bem quentes em poucos meses do ano.

J.A.R. – H.C.

A. M. Pires Cabral
(n. 1941)

Inverno

Nove meses de inverno...

chamais a isso inverno    a esse lúdico
intenso cívico síncrono calor
à límpida presença de Cristo regressado
por um dia    aos presentes    ao fogão de sala

chamais a isso inverno   Augusto Gil
comovido por dentro das vidraças    inverno isso
a aguardente    as filhós    o baile de fim de ano

e então

à teimosa assunção    ao denso e destituto
desfavor   aos corpos nus à chuva    ao suão
à nortada devassando enxergas corações
à geada nos ossos nas orelhas    dos pezinhos
de criança aos traços miniaturais – mas lá fora
ao lume apagado    à cinza fria e remexida
à deserção do pão    à arca exausta    à talha descorrida

à roxa e trágica novena    que chamais?

De: “Algures a Nordeste” (1974)

Inverno
(Francisco de Goya: pintor espanhol)

Elucidário:

Filhó – bolinho feito de farinha e ovos, frito e polvilhado com açúcar e canela;
Destituto – privado, posposto, carente, destituído;
Suão – vento quente e abafado que sopra do sul;
Nortada – vento áspero e frio que sopra do norte;
Enxerga – colchão grosseiro de palha, cama pobre;
Descorrer – estirar o que estava recolhido ou enrolado.

Referência:

CABRAL, António Manuel Pires. Inverno. In: MOURÃO-FERREIRA, David; SEIXO, Maria Alzira (Orgs.). Portugal: a terra e o homem. II Volume - 3ª Série. Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. p. 99.


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