Que tal um apetite que nos remeta às alturas, ali onde as nuvens
passeiam com vagar, para relembrar nomes, fatos, objetos e circunstâncias que
marcaram eras, em digressão vertiginosa, recheada de vocábulos a que nós, os
brasileiros, estamos pouco afeitos?!
Tudo é lançado ao cadinho surrealista para dar liga à “espuma dos dias”,
mercê da voragem que assola o espírito do poeta, a almejar muito mais do que a
poesia para distrair-se: quer ele dar vazão a um rol de imagens, insólitas que
sejam, desafiadoramente justapostas, para apurar se o inconsciente – não racional,
por suposto – é capaz de explicar-lhe, de algum modo, a lógica que preside a
crônica humana sobre a terra. Obterá êxito?
J.A.R. – H.C.
António Manuel Couto Viana
(1923-2010)
Apetite Nefelibata
Hoje apetece pompa e
beleza:
finos veludos da cor
do vinho,
pavão no parque,
gomil na mesa,
uma espinela para um
espinho.
Voltar ao tempo do
alabastro,
da cassoleta, do
faldistório...
– Ser mais eu génio
do que o de Castro (*)
e mais de Castro que
Alberto Osório.
Hoje apetece descer
às salas
com um piano de cauda
longa;
ter por trombeta, para
abrir alas,
o grito d’aço de uma
araponga.
Hoje apetece museu em
casa
e um candelabro para
visitá-lo;
em cada espádua ter
uma asa
e em cada fuga ter um
cavalo.
Hoje apetece beber
veneno,
com ventanias no
reposteiro,
servido em taça de
loiro Reno
por um sinistro,
núbio copeiro.
Hoje apetece leão aos
pés,
punhal no sangue,
sangue no grito;
ser uma efígie de
Ramsés
todo em pirâmide,
como o Egipto.
Hoje apetece livor de
arcadas
de algum palácio
gótico e vago,
onde princesas
despenteadas
morram em cisne num
mago lago.
Ou em Bizâncio, com
não sei quem,
ter um encontro
crepuscular...
(Ai do poeta se
apenas tem
a poesia para
brincar!)
Em: “Poesia: 1948-1963” (1965)
Sonho de Cristal no Egito
(Julia Passamonti:
artista ítalo-americana)
Elucidário:
Gomil – recipiente, frasco, jarro de
boca estreita, para lavatório;
Espinela – espécie de pedra preciosa da
cor do rubi;
Cassoleta – pequeno vaso em que se
queimam perfumes;
Faldistório – cadeira sem espaldar para
assento de bispos em cerimônias litúrgicas;
Araponga – ave que produz som parecido
ao de um martelo numa bigorna;
Reposteiro – espécie de cortinado de
pano grosso utilizado para adorno ou resguardo de janelas ou portas;
Núbio – natural ou habitante da Núbia,
região do nordeste da África;
Livor – lividez, brancura, esqualidez.
Nota:
(*) – Certamente um trocadilho
envolvendo os nomes de Eugénio de Castro, poeta e autor dramático (1869-1944),
e de Alberto Osório de Castro, escritor e político (1868-1946), ambos de origem
portuguesa.
Referência:
VIANA, António Manuel Couto. Apetite
Nefelibata. In: MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, E. M. de (Orgs.). Antologia da novíssima poesia portuguesa.
3. ed. 1. vol. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1971. p. 32-33. (‘Círculo de
Poesia’; v. 46)
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