Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 9 de dezembro de 2017

António Manuel Couto Viana - Apetite Nefelibata

Que tal um apetite que nos remeta às alturas, ali onde as nuvens passeiam com vagar, para relembrar nomes, fatos, objetos e circunstâncias que marcaram eras, em digressão vertiginosa, recheada de vocábulos a que nós, os brasileiros, estamos pouco afeitos?!

Tudo é lançado ao cadinho surrealista para dar liga à “espuma dos dias”, mercê da voragem que assola o espírito do poeta, a almejar muito mais do que a poesia para distrair-se: quer ele dar vazão a um rol de imagens, insólitas que sejam, desafiadoramente justapostas, para apurar se o inconsciente – não racional, por suposto – é capaz de explicar-lhe, de algum modo, a lógica que preside a crônica humana sobre a terra. Obterá êxito?

J.A.R. – H.C.

António Manuel Couto Viana
(1923-2010)

Apetite Nefelibata

Hoje apetece pompa e beleza:
finos veludos da cor do vinho,
pavão no parque, gomil na mesa,
uma espinela para um espinho.

Voltar ao tempo do alabastro,
da cassoleta, do faldistório...
– Ser mais eu génio do que o de Castro (*)
e mais de Castro que Alberto Osório.

Hoje apetece descer às salas
com um piano de cauda longa;
ter por trombeta, para abrir alas,
o grito d’aço de uma araponga.

Hoje apetece museu em casa
e um candelabro para visitá-lo;
em cada espádua ter uma asa
e em cada fuga ter um cavalo.

Hoje apetece beber veneno,
com ventanias no reposteiro,
servido em taça de loiro Reno
por um sinistro, núbio copeiro.

Hoje apetece leão aos pés,
punhal no sangue, sangue no grito;
ser uma efígie de Ramsés
todo em pirâmide, como o Egipto.

Hoje apetece livor de arcadas
de algum palácio gótico e vago,
onde princesas despenteadas
morram em cisne num mago lago.

Ou em Bizâncio, com não sei quem,
ter um encontro crepuscular...
(Ai do poeta se apenas tem
a poesia para brincar!)

Em: “Poesia: 1948-1963” (1965)

Sonho de Cristal no Egito
(Julia Passamonti: artista ítalo-americana)

Elucidário:

Gomil – recipiente, frasco, jarro de boca estreita, para lavatório;
Espinela – espécie de pedra preciosa da cor do rubi;
Cassoleta – pequeno vaso em que se queimam perfumes;
Faldistório – cadeira sem espaldar para assento de bispos em cerimônias litúrgicas;
Araponga – ave que produz som parecido ao de um martelo numa bigorna;
Reposteiro – espécie de cortinado de pano grosso utilizado para adorno ou resguardo de janelas ou portas;
Núbio – natural ou habitante da Núbia, região do nordeste da África;
Livor – lividez, brancura, esqualidez.

Nota:

(*) – Certamente um trocadilho envolvendo os nomes de Eugénio de Castro, poeta e autor dramático (1869-1944), e de Alberto Osório de Castro, escritor e político (1868-1946), ambos de origem portuguesa.

Referência:

VIANA, António Manuel Couto. Apetite Nefelibata. In: MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, E. M. de (Orgs.). Antologia da novíssima poesia portuguesa. 3. ed. 1. vol. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1971. p. 32-33. (‘Círculo de Poesia’; v. 46)

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