Millôr Fernandes - Gato na Ogiva

Millôr concebe uma experiência científica para se verificar as condições de resistência animal no espaço. E para tanto, lança-se aos céus, encapsulado numa ogiva, não uma cadela como a “Laika” russa para orbitar a Terra no “Sputinik 2”, mas um gato chamado “Geraldo Timóteo”, para alcançar a Lua.

Não restam dúvidas sobre o que terá ocorrido com o bichano: perdeu-se no espaço e encontrou o seu fim, tal como Laika, um desapiedado destino a quem, pouco antes, “navegava” pelos telhados e muros à procura de parceiras.

J.A.R. – H.C.

Millôr Fernandes

(1923-2012)

Gato na Ogiva

Os físicos brasileiros enviarão, na ogiva do primeiro foguete de

fabricação nacional, um gato, a fim de colher dados científicos

sobre a resistência animal ao voo interplanetário (Dos jornais e

Vox Populli.)

Geraldo Timóteo era apenas um gato

Integrado em sua espécie,

Um tipo sensual,

Felino,

Sem trato.

Gatinho em pequenino,

Aos poucos grande gato

Gatão logo depois, esquivo e sinuoso,

Pacato.

O mundo era feito à sua imagem e vontade

Mundo de gatos, de telhados,

De muros de jardim, bolotas de jornal.

Não lhe davam tarefas –

Não cuidava de ratos –

Era um gato vadio; um exemplar da raça

Destinado à vaidade

Dos gatos –

A longevidade.

Dos astros só conhecia a Lua

Que, em cheia, clareava a rua

Aumentava o ardor da gataria

Sua cacofonia.

Pois um dia foi lançado contra a Lua

Sem consulta ou anseio seu.

Escolhido, examinado, treinado,

Fotografado em todas as poses –

Muitos o penalizavam

Mas havia os que o invejavam.

Gato voa? Voa!

Zuniu pelos telhados de antigas bacanais

Ventou pelas mangueiras de esquecidos quintais.

Em ciência

Uma experiência é uma etapa

Nem fracassa nem vence.

Geraldo Timóteo perdeu-se em pleno espaço

Sem ser herói... ou rato.

Gertrude Stein reconhecia o fato

Um gato é um gato é um gato é um gato.

(12/1/1959)

Gato Preto & Lua Cheia

(Cyra R. Cancel: artista porto-riquenha)

Referência:

FERNANDES, Millôr. Gato na ogiva. In: __________. Essa cara não me é estranha e outros poemas. 1. ed. São Paulo, SP: Boa Companhia, 2014. p. 69-71.

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