Apesar de extenso, resolvemos transcrever o discurso inteiro de Affonso
Ávila, discurso esse que, aqui, já havíamos
postado a sua última parte. Trata-se de onze inferências extraídas de
assertivas que evoluem passo a passo, até as suas expressões definitivas,
grafadas por Ávila em letras maiúsculas.
Assim, seria o poeta, entre tantas noções, um “terrorista”, um “desequilibrado
mental”, um “traficante de drogas”, um “plagiário”, um “bobo da corte” e por aí
vai. Logo ele, antes de tudo, um visionário, alguém com o dom da imaginação,
capaz de ver a realidade com luzes não perceptíveis à maioria das gentes!
J.A.R. – H.C.
Affonso Ávila
(1928-2012)
Discurso da difamação do poeta
1. The Waste Land (1)
O poeta nasceu no
barracão de um terreno de chácara no
velho bairro do Calafate
O poeta nasceu no
barracão velho de um terreno no Calafate
O poeta nasceu no
barracão de um terreno no Calafate
O poeta nasceu num
terreno do Calafate
O poeta nasceu num
terreno baldio no Calafate
O poeta nasceu num
lote vazio no Calafate
O poeta nasceu num
lote vazio
O POETA FOI
ABANDONADO NUM TERRENO VAZIO
2. Castillo interior (2)
Na Quaresma o poeta
recobria de papel roxo os quadros de
santos nas paredes de
sua casa e a mãe pensava mandá-lo
para o seminário
quando crescesse
Na Quaresma o poeta
recobria de papel roxo os quadros de
santos enquanto a mãe
se preparava para mandá-lo para
o seminário
Na Quaresma o poeta
reunia os panos roxos enquanto a mãe
arrumava sua mala
para o seminário
Na Quaresma o poeta
vestido de roxo chegava com sua mala
ao seminário
Na Quaresma o poeta
com sua veste roxa dizia a primeira
missa no seminário
Na Quaresma o poeta
roxo de raiva mistificava no seminário
O POETA É UM PADRE
APÓSTATA
3. Transforma-se o amador na coisa
amada (3)
Quando o umbigo do
poeta caiu sua mãe o enterrou junto
às roseiras para que
o menino gostasse das moças
Quando mal tinha
caído o umbigo do poeta sua mãe viu o
menino junto às
roseiras olhando para as moças
Quando o poeta ainda
era menino sua mãe o viu entre as
roseiras olhando para
o umbigo das moças
Quando o poeta ainda
era menino foi visto entre as roseiras
com a mão no umbigo
das moças
Quando o menino
passou entre as roseiras viu o poeta com
a mão no umbigo da
moça
Quando o poeta se viu
entre as roseiras passou logo a mão
no umbigo da moça
O poeta passa a mão
no umbigo de toda moça que vê
O poeta vive obcecado
por umbigo de mulher
O POETA ESTÁ PRESO AO
UMBIGO DA MULHER
4. Hyperions Schicksalslied (4)
O poeta quando jovem
sofreu uma crise neurótica tendo de
submeter-se a
tratamento de choque numa clínica
especializada
O poeta quando jovem
sofreu uma crise neurótica tendo de
submeter-se a
tratamento de choque elétrico numa casa
de saúde
O poeta sofreu de
neurose e teve de submeter-se a tratamento
de choque elétrico
numa casa de saúde
O poeta sofre de
neurose e já teve de tomar choque elétrico
numa casa de saúde
O poeta é neurótico e
já teve de internar-se numa casa de saúde
O poeta tem problemas
mentais e já foi internado em hospital
O poeta é
esquizofrênico e frequentemente é recolhido ao
hospício
O poeta é
maníaco-depressivo
O POETA É UM
DESEQUILIBRADO MENTAL
5. Had we but
World enough, and Time (5)
O poeta cumprimentou
a moça ruiva e dirigiu-se para o
edifício em frente
O poeta cumprimentou
a moça ruiva e entrou no edifício em
frente
O poeta conversou com
a moça ruiva e entrou no edifício em
frente
O poeta encontrou-se
com a moça ruiva e se dirigiu com ela
para o edifício em
frente
O poeta encontrou a
moça ruiva e entrou com ela no edifício
em frente
O poeta encontrou a
moça ruiva conversaram e entraram no
edifício em frente
O poeta abraçou a
moça ruiva e entraram no edifício em frente
O poeta entrou no edifício
abraçado com a moça ruiva
O poeta e uma mulher
ruiva entraram abraçados no edifício
O poeta e a mulher
ruiva entraram juntos no edifício suspeito
O poeta e a mulher
ruiva frequentam uma casa suspeita
A MUSA DO POETA É A
SUA AMANTE RUIVA
6. V Internacional (6)
O poeta é visto todos
os sábados no bar com um grupo de
jovens dentre eles um
negro e um barbado
O poeta é visto todos
os sábados no bar com um grupo de
jovens negros e barbados
O poeta é visto todos
os sábados no bar com um grupo de
jovens barbados
O poeta é visto no
bar com um grupo de jovens barbados
O poeta é visto no
bar com um grupo de barbados
O poeta é visto com
um grupo de barbados
O poeta é visto com
uns barbados estranhos
O poeta é visto com
uns barbados suspeitos
O poeta é visto com
uns suspeitos
O poeta é um suspeito
O poeta é suspeito
O POETA É UM
TERRORISTA
7. Le bateau ivre (7)
Os jovens cabeludos
da rua onde mora o poeta têm fama
de fumar maconha
Os jovens cabeludos
da rua onde mora o poeta fumam
maconha
Os jovens cabeludos
fumam maconha na rua do poeta
Os jovens cabeludos
fumam maconha na casa do poeta
Os jovens cabeludos
fumam maconha em sua casa com o
poeta
Os jovens cabeludos
buscam maconha na casa do poeta
Os jovens cabeludos
buscam droga na casa do poeta
Os jovens saem
drogados da casa do poeta
Os jovens são
drogados pelo poeta
O POETA É UM
TRAFICANTE DE DROGAS
8. Parnaso obsequioso (8)
O poeta recusou
convite do governador para jantar em seu
palácio com o
ministro
O poeta foi convidado
pelo governador para jantar em seu
palácio com o
ministro
O poeta convidado
pelo governador foi jantar em seu palácio
com o ministro
O poeta jantou no
palácio com o governador e o ministro
O poeta costuma
jantar no palácio com o governador e seus
convidados
O poeta janta sempre
no palácio com o governador e seus
convidados
O poeta jantando no
palácio causa prazer ao governador e
seus convidados
O poeta alegra o
governador e seus convidados nos jantares
do palácio
O poeta diverte o
governador e seus convidados
O poeta faz rir o
governador e seus convidados
O POETA É UM
BOBO-DA-CORTE DO SISTEMA
9. Psicologia da composição (9)
O poeta articula
lentamente as palavras e a gente parece perceber
entre uma e outra
longos espaços de reflexão e silêncio
O poeta articula
lentamente as palavras e a gente percebe entre
uma e outra longos
espaços de salivação e silêncio
O poeta procura
lentamente as palavras e a gente percebe entre
uma e outra longos
espaços de salivação
O poeta fala com
dificuldade parecendo mastigar e salivar as
palavras
O poeta fala com
muita dificuldade e a boca cheia de saliva
O poeta não sabe
falar e mastiga jocosamente as palavras
O poeta masca as
palavras como se mascasse chicletes
O POETA É UM
RUMINANTE DE PALAVRAS
10. Arte de furtar (10)
O poeta declarou que
toda criação é tributária de outras
criações no
permanente processo de linguagem da poesia
O poeta afirmou que
todo criador é tributário de outros no
processo de linguagem
da poesia
O poeta se confessou
um criador tributário de outros na
linguagem de sua
poesia
O poeta não esconde
que sua poesia é tributária da linguagem
de outros criadores
O poeta não esconde
que sua poesia é influenciada pela
linguagem de outros
criadores
O poeta não faz
segredo de que se utiliza da linguagem de
outros poetas
O poeta fala
abertamente que se apropria da linguagem de
outros poetas
O poeta é um
deslavado apropriador de linguagens
O POETA É UM PLAGIÁRIO
11. Pobre velha música (11)
O poeta falava e as
pessoas o ouviam atentamente
O poeta falava e as
pessoas costumavam ouvi-lo atentamente
O poeta falava e as
pessoas costumavam ouvi-lo com alguma
atenção
O poeta falava e as
pessoas às vezes o ouviam com alguma
atenção
O poeta falava e
algumas pessoas o ouviam com alguma
atenção
O poeta falava mas
raras pessoas o ouviam com alguma
atenção
O poeta falava e as
pessoas o ouviam sem atenção
O poeta falava e as
pessoas já não o ouviam
O poeta falava e as
pessoas já o olhavam sem ouvir
O poeta mal fala e as
pessoas já abrem a boca em fastio
A ATITUDE DIANTE DO
POETA É O BOCEJO
Jovem Escrevendo
(Jean-Louis Ernest
Meissonier: artista francês)
Notas:
(1) Título de um famoso poema de T. S.
Eliot (1888-1956), “A Terra Desolada”, considerado por muitos como um
dos melhores poemas das duas últimas centúrias;
(2) Obra escrita em 1577 por Santa Teresa
d’Ávila (1515-1582), como um guia para o desenvolvimento
espiritual através do serviço e da oração;
(3) Primeiro verso de um dos mais famosos sonetos
de Luís Vaz de Camões (1524-1580);
(4) Título de um famoso poema do
poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843);
(5) Primeiro verso do poema “To His Coy Mistress”, do poeta
inglês Andrew Marvell (1621-1678);
(6) Referência à Quinta Internacional,
movimento com que se pretendeu dar prosseguimento ao movimento socialista
internacional, depois de esgotadas as articulações da Quarta Internacional,
promovida por Leon Trotsky (1879-1940);
(7) Referência ao poema “O Barco Ébrio”, do
poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891);
(8) Título de drama
criado pelo poeta arcádico Cláudio Manuel da Costa (1729-1789);
(9) Título de afamada obra – e também de poema –
do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999);
(10) Obra barroca dominantemente atribuída ao
padre jesuíta Manuel da Costa (1601-1667);
(11) Título de um poema do poeta português
Fernando Pessoa (1888-1935).
Referência:
ÁVILA, Affonso. Discurso da difamação
do poeta. In: Revista Colóquio/Letras.
Fundação Calouste Gulbenkian; Lisboa, PT; Poesia, nº 30, mar. 1976, p. 80-85.
Disponível neste
endereço. Acesso em: 19 jan. 2017.
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