Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Affonso Ávila - Discurso da difamação do poeta

Apesar de extenso, resolvemos transcrever o discurso inteiro de Affonso Ávila, discurso esse que, aqui, já havíamos postado a sua última parte. Trata-se de onze inferências extraídas de assertivas que evoluem passo a passo, até as suas expressões definitivas, grafadas por Ávila em letras maiúsculas.

Assim, seria o poeta, entre tantas noções, um “terrorista”, um “desequilibrado mental”, um “traficante de drogas”, um “plagiário”, um “bobo da corte” e por aí vai. Logo ele, antes de tudo, um visionário, alguém com o dom da imaginação, capaz de ver a realidade com luzes não perceptíveis à maioria das gentes!

J.A.R. – H.C.

Affonso Ávila
(1928-2012)

Discurso da difamação do poeta

1. The Waste Land (1)

O poeta nasceu no barracão de um terreno de chácara no
velho bairro do Calafate
O poeta nasceu no barracão velho de um terreno no Calafate
O poeta nasceu no barracão de um terreno no Calafate
O poeta nasceu num terreno do Calafate
O poeta nasceu num terreno baldio no Calafate
O poeta nasceu num lote vazio no Calafate
O poeta nasceu num lote vazio

O POETA FOI ABANDONADO NUM TERRENO VAZIO

2. Castillo interior (2)

Na Quaresma o poeta recobria de papel roxo os quadros de
santos nas paredes de sua casa e a mãe pensava mandá-lo
para o seminário quando crescesse
Na Quaresma o poeta recobria de papel roxo os quadros de
santos enquanto a mãe se preparava para mandá-lo para
o seminário
Na Quaresma o poeta reunia os panos roxos enquanto a mãe
arrumava sua mala para o seminário
Na Quaresma o poeta vestido de roxo chegava com sua mala
ao seminário
Na Quaresma o poeta com sua veste roxa dizia a primeira
missa no seminário
Na Quaresma o poeta roxo de raiva mistificava no seminário

O POETA É UM PADRE APÓSTATA

3. Transforma-se o amador na coisa amada (3)

Quando o umbigo do poeta caiu sua mãe o enterrou junto
às roseiras para que o menino gostasse das moças
Quando mal tinha caído o umbigo do poeta sua mãe viu o
menino junto às roseiras olhando para as moças
Quando o poeta ainda era menino sua mãe o viu entre as
roseiras olhando para o umbigo das moças
Quando o poeta ainda era menino foi visto entre as roseiras
com a mão no umbigo das moças
Quando o menino passou entre as roseiras viu o poeta com
a mão no umbigo da moça
Quando o poeta se viu entre as roseiras passou logo a mão
no umbigo da moça
O poeta passa a mão no umbigo de toda moça que vê
O poeta vive obcecado por umbigo de mulher

O POETA ESTÁ PRESO AO UMBIGO DA MULHER

4. Hyperions Schicksalslied (4)

O poeta quando jovem sofreu uma crise neurótica tendo de
submeter-se a tratamento de choque numa clínica
especializada
O poeta quando jovem sofreu uma crise neurótica tendo de
submeter-se a tratamento de choque elétrico numa casa
de saúde
O poeta sofreu de neurose e teve de submeter-se a tratamento
de choque elétrico numa casa de saúde
O poeta sofre de neurose e já teve de tomar choque elétrico
numa casa de saúde
O poeta é neurótico e já teve de internar-se numa casa de saúde
O poeta tem problemas mentais e já foi internado em hospital
O poeta é esquizofrênico e frequentemente é recolhido ao
hospício
O poeta é maníaco-depressivo

O POETA É UM DESEQUILIBRADO MENTAL

5. Had we but World enough, and Time (5)

O poeta cumprimentou a moça ruiva e dirigiu-se para o
edifício em frente
O poeta cumprimentou a moça ruiva e entrou no edifício em
frente
O poeta conversou com a moça ruiva e entrou no edifício em
frente
O poeta encontrou-se com a moça ruiva e se dirigiu com ela
para o edifício em frente
O poeta encontrou a moça ruiva e entrou com ela no edifício
em frente
O poeta encontrou a moça ruiva conversaram e entraram no
edifício em frente
O poeta abraçou a moça ruiva e entraram no edifício em frente
O poeta entrou no edifício abraçado com a moça ruiva
O poeta e uma mulher ruiva entraram abraçados no edifício
O poeta e a mulher ruiva entraram juntos no edifício suspeito
O poeta e a mulher ruiva frequentam uma casa suspeita

A MUSA DO POETA É A SUA AMANTE RUIVA

6. V Internacional (6)

O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens dentre eles um negro e um barbado
O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens negros e barbados
O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens barbados
O poeta é visto no bar com um grupo de jovens barbados
O poeta é visto no bar com um grupo de barbados
O poeta é visto com um grupo de barbados
O poeta é visto com uns barbados estranhos
O poeta é visto com uns barbados suspeitos
O poeta é visto com uns suspeitos
O poeta é um suspeito
O poeta é suspeito

O POETA É UM TERRORISTA

7. Le bateau ivre (7)

Os jovens cabeludos da rua onde mora o poeta têm fama
de fumar maconha
Os jovens cabeludos da rua onde mora o poeta fumam
maconha
Os jovens cabeludos fumam maconha na rua do poeta
Os jovens cabeludos fumam maconha na casa do poeta
Os jovens cabeludos fumam maconha em sua casa com o
poeta
Os jovens cabeludos buscam maconha na casa do poeta
Os jovens cabeludos buscam droga na casa do poeta
Os jovens saem drogados da casa do poeta
Os jovens são drogados pelo poeta

O POETA É UM TRAFICANTE DE DROGAS

8. Parnaso obsequioso (8)

O poeta recusou convite do governador para jantar em seu
palácio com o ministro
O poeta foi convidado pelo governador para jantar em seu
palácio com o ministro
O poeta convidado pelo governador foi jantar em seu palácio
com o ministro
O poeta jantou no palácio com o governador e o ministro
O poeta costuma jantar no palácio com o governador e seus
convidados
O poeta janta sempre no palácio com o governador e seus
convidados
O poeta jantando no palácio causa prazer ao governador e
seus convidados
O poeta alegra o governador e seus convidados nos jantares
do palácio
O poeta diverte o governador e seus convidados
O poeta faz rir o governador e seus convidados

O POETA É UM BOBO-DA-CORTE DO SISTEMA

9. Psicologia da composição (9)

O poeta articula lentamente as palavras e a gente parece perceber
entre uma e outra longos espaços de reflexão e silêncio
O poeta articula lentamente as palavras e a gente percebe entre
uma e outra longos espaços de salivação e silêncio
O poeta procura lentamente as palavras e a gente percebe entre
uma e outra longos espaços de salivação
O poeta fala com dificuldade parecendo mastigar e salivar as
palavras
O poeta fala com muita dificuldade e a boca cheia de saliva
O poeta não sabe falar e mastiga jocosamente as palavras
O poeta masca as palavras como se mascasse chicletes

O POETA É UM RUMINANTE DE PALAVRAS

10. Arte de furtar (10)

O poeta declarou que toda criação é tributária de outras
criações no permanente processo de linguagem da poesia
O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no
processo de linguagem da poesia
O poeta se confessou um criador tributário de outros na
linguagem de sua poesia
O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem
de outros criadores
O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela
linguagem de outros criadores
O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de
outros poetas
O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de
outros poetas
O poeta é um deslavado apropriador de linguagens

O POETA É UM PLAGIÁRIO

11. Pobre velha música (11)

O poeta falava e as pessoas o ouviam atentamente
O poeta falava e as pessoas costumavam ouvi-lo atentamente
O poeta falava e as pessoas costumavam ouvi-lo com alguma
atenção
O poeta falava e as pessoas às vezes o ouviam com alguma
atenção
O poeta falava e algumas pessoas o ouviam com alguma
atenção
O poeta falava mas raras pessoas o ouviam com alguma
atenção
O poeta falava e as pessoas o ouviam sem atenção
O poeta falava e as pessoas já não o ouviam
O poeta falava e as pessoas já o olhavam sem ouvir
O poeta mal fala e as pessoas já abrem a boca em fastio

A ATITUDE DIANTE DO POETA É O BOCEJO

Jovem Escrevendo
(Jean-Louis Ernest Meissonier: artista francês)

Notas:

(1) Título de um famoso poema de T. S. Eliot (1888-1956), “A Terra Desolada”, considerado por muitos como um dos melhores poemas das duas últimas centúrias;

(2) Obra escrita em 1577 por Santa Teresa d’Ávila (1515-1582), como um guia para o desenvolvimento espiritual através do serviço e da oração;

(3) Primeiro verso de um dos mais famosos sonetos de Luís Vaz de Camões (1524-1580);

(4) Título de um famoso poema do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843);

(5) Primeiro verso do poema “To His Coy Mistress”, do poeta inglês Andrew Marvell (1621-1678);

(6) Referência à Quinta Internacional, movimento com que se pretendeu dar prosseguimento ao movimento socialista internacional, depois de esgotadas as articulações da Quarta Internacional, promovida por Leon Trotsky (1879-1940);

(7) Referência ao poema “O Barco Ébrio”, do poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891);

(8) Título de drama criado pelo poeta arcádico Cláudio Manuel da Costa (1729-1789);

(9) Título de afamada obra – e também de poema – do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999);

(10) Obra barroca dominantemente atribuída ao padre jesuíta Manuel da Costa (1601-1667);

(11) Título de um poema do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935).

Referência:

ÁVILA, Affonso. Discurso da difamação do poeta. In: Revista Colóquio/Letras. Fundação Calouste Gulbenkian; Lisboa, PT; Poesia, nº 30, mar. 1976, p. 80-85. Disponível neste endereço. Acesso em: 19 jan. 2017.

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